Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo, clique aqui.
18.06.2011 - 21h38
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.
18.06.2011 - 21h38
Responda depressa:
- Você está descrente no futuro do país?
- Ultimamente, a sociedade brasileira lhe parece alheia, indiferente, como que moralmente anestesiada em relação ao desperdício de recursos públicos e à corrupção no governo?
- Acha que somos um povo despolitizado, passivo, inconsciente de seus direitos e de sua cidadania?
Vou tentar lhe dizer de maneira sucinta o que penso sobre esses três pontos.
Não, não estou descrente, e creio que a maioria dos brasileiros também não está. Descrente, não. Penso que a maioria das pessoas tem uma visão bem realista. Que temos uma pedreira pela frente – necessidade de reduzir a pobreza e as desigualdades, de melhorar muito a educação, de reduzir a roubalheira e a violência -, não há dúvida.
Cada um desses é um super-problema e, juntos, eles chegam a assustar. Isto é óbvio.
Mas se temos super-problemas, temos também super-recursos, e aqui não me refiro apenas (apenas?) ao território imenso, às riquezas minerais, ao potencial agrícola etc etc.
Eu poderia destacar diversos aspectos de nossa sociedade e de nossa cultura que considero altamente positivos. Acredito piamente que somos um povo bastante flexível, capaz de resolver de modo prático ou pela negociação problemas que em outros países se tornam bastante complicados e dão ensejo a muita violência. Sim, sim, eu sei que ultimamente tais aspectos têm sido questionados (ou “desconstruídos”, para usar um termo da moda) por muitos cientistas sociais; o problema é que os “desconstrutores” muitas vezes se esquecem de fazer as devidas comparações com outros períodos de nossa história ou da história de outros países.
Mas o ponto que me parece essencial ressaltar é que super-recursos, em nosso caso, não são só os da natureza. Nós temos também recursos históricos, políticos e culturais; uma história de muitos erros, mas também de super-acertos. O território imenso, por que é tão imenso? Por que não se fragmentou em muitos países menores, como ocorreu na América espanhola? Um construção institucional que remonta à Constituição de 1824; não deveríamos nos orgulhar de termos começado a construir o Legislativo e o Judiciário já naquele período?
Ah sim, eu sei. Tudo “formal”, tudo “fachada”, tudo “imitação” da Europa liberal. É dessa visão que os manuais de história, geralmente inspirados na vulgata marxista, se acham impregnados. Um tipo de relato histórico que faz jus ao que o sempre arguto Josias de Souza, jornalista da Folha, designou como historicídio. Uma história assassinada.
Mas, se me lembro bem, o historicídio que Josias tinha em mente quando criou a expressão era o patenteado pelo PT, ao qual eu também já me referi algumas vezes como uma rejeição indiscriminada do passado histórico. Desde Pedro Álvares Cabral – so the story goes -, nunca “nesse” país se fez nada que prestasse, certamente nada com grandeza, espírito público e tendo em vista o bem coletivo. Tudo o que se fez foi feito por e para as elites.
A vulgata que o petismo disseminou pelo país conseguiu, como se percebe, uma proeza. Achatou de vez a história. Contou a história de uma história inexistente. Atingido esse ponto, perguntar se alguém se orgulha do Brasil, e portanto de sua história, é como perguntar se Belzebu senta à mão direita do Deus Pai, Todo Poderoso.
História, entre nós, no sentido mais denso e nobre do termo, é coisa recente: recentíssima. Ah sim, e desde quando ela existe? Bingo! Desde a fundação do Partido dos Trabalhadores. Desde quando os leninistas, maoístas e trotsquistas que pegaram em armas “pela democracia”, mais os trabalhadores conscientes, mais o clero progressista etc etc, fundaram o partido.
O leitor haverá de perdoar o extenso détour que precisei fazer, mas agora já estou em condições de retomar a estrada principal.
Eis o que eu pretendia dizer: somos um povo com bastante confiança no futuro; confiança realista, pois, se temos super-problemas, também temos super-recursos. Contudo, a julgar pela história petista – a esta altura semi-oficial ou quase oficial -, nossos super-recursos se constituíram no passado recente: há apenas três décadas, para sermos exatos. É ou não é uma história da carochinha?
E agora, finalmente, posso abordar a segunda das três indagações que suscitei no início. Você acha que a sociedade brasileira carece ou perdeu o pouco que possuía de senso moral? Não está nem aí para os desperdícios e desvios de recursos públicos? Estará mesmo, como em geral se afirma, anestesiada, insensível à corrupção?
Esta pergunta não é menos complexa que a anterior. Para respondê-la de forma convincente, eu precisaria me estender bem mais, o que seria um despropósito. Direi apenas o essencial.
Combater “a” corrupção, em abstrato, é uma tarefa ao mesmo tempo amena e extremamente árdua. Amena, porque ninguém discorda. Extremamente árdua, pela mesma razão. Se ninguém discorda, onde está o “outro”: o adversário, os inimigos, os corruptos?
Como combater um inimigo que não aparece ? Where is he? Everywhere and nowhere, my dear.
Apontemos então as nossas armas contra um inimigo real . Um fato real, um dos muitos escândalos dos últimos anos. Neste caso, vocês sabem o que acontece? Tudo se passa como uma cena de desenho animado. Numa praça, há um monte de gente, animais e aves de todo tipo, mas, de repente, todos saem em disparada e a praça fica vazia. Ou quase vazia. Onde estão os sindicatos? O governo cooptou. Os estudantes, a gloriosa UNE? O governo cooptou. Os caras-pintadas? O governo não os cooptou diretamente, mas cooptou a UNE, o PCdoB e quejandos, o que dá no mesmo.
E a oposição? Ninguém sabe, ninguém viu. No Congresso, ela parece não estar: é uma pequena minoria. Por que uma pequena minoria? Porque teve poucos votos. As simple as that.
Pequena e incapaz de se fazer ouvir. Por que? Porque em geral quem se faz ouvir é o lado mais forte e, no Brasil, o lado mais forte é sempre o Executivo, sobretudo quando a economia vai razoavelmente – ou os problemas estão sendo competentemente disfarçados -, e o presidente (no caso, a “presidenta”) ainda trescala eflúvios de urna.
E então, somos um povo despolitizado, passivo, bovinamente inconsciente de seus direitos? Outra questão complicada, mas, felizmente, já em parte respondida. A resposta é sim e não.
Em 1984, o Brasil viveu a glória das “Diretas-Já”, a maior manifestação de massas de sua história. De lá para cá, o que aconteceu? Desaprendemos a cidadania? Então a cidadania é mais difícil que o controle da bola e os mistérios do violino, que os iniciados em geral nunca desaprendem? Não, não. É mais ou menos a mesma coisa.
A diferença é que, em 1984, o país se dividira nitidamente em dois campos, como as duas metades de uma maçã cortada ao meio. De um lado, a “sociedade”, o “povo”; do outro, o “governo” (e, mais exatamente, o ciclo de governos militares).
Com o “povo” estavam os principais governos estaduais, quase todos os partidos e quase toda a imprensa; e todos os sindicatos, todos os estudantes, todos os escritores, todos os artistas, todos os padres. Toda a cidadania, portanto; e toda a ética. Toda a crença no futuro. Toda a esperança.
Essa é a diferença. Por menos politizados que sejam, os cidadãos brasileiros se parecem com os de qualquer outro país neste ponto fundamental. Eles se mobilizam e participam se ouvem a convocação e sentem o respaldo de entidades com poder e legitimidade para convocar.
Se não, não. Se tais entidades trocam seu poder e sua legitimidade por benefícios que o governo de plantão lhes oferece, o quadro se complica bastante.
Por maior que seja a sua indignação, o cidadão avulso, o cidadão pessoa física, dificilmente se faz ouvir. Tem saída? Tem, mas o caminho até ela é longo e cheio de desvios. Árduo e pedregoso.
Mas enfim, alguém acredita poder chegar por algum atalho à política no sentido mais sério do termo – à política com densidade ética?
A quem acredita, eu só posso sugerir que procure outro ramo.
Bolívar LamounierO sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.