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quarta-feira, 8 de junho de 2011

A fonte da juventude

Artigo de Roberto Damatta, publicado na edição de hoje do Estadão. Para acessá-lo, clique aqui.

08 de junho de 2011 | 0h 00



Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Eu sou do tempo em que "a vida começava aos 40". Um dia perguntamos o segredo desse limiar ao nosso professor de História. Aos 40, disse, a sexualidade enfraquece e, sem o aguilhão do desejo, o sujeito inicia uma nova vida dedicada às grandes causas morais e religiosas. Aos 14 anos, eu que só vivia o desejo, mas estava longe dos 40, deixei essa lembrança na gaveta dos esquecimentos até que, nestes meus 70 e poucos, reli O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway.
Era um menino de 20 anos quando li esse livro pela primeira vez. O herói, um velho chamado Santiago, pescador azarado que sonhava com leões, embora morasse numa cabana nas praias brancas e ensolaradas de Cuba, não me impressionou. Frequentador da bela praia de Icaraí, então virgem dessa vergonhosa poluição que a assola há mais de 40 anos, eu fiquei mais surpreendido com as imagens dos leões e com a batalha do velho contra o gigantesco e precioso marlim, o maior e mais magnífico peixe que jamais pescou em toda sua vida mas que, depois morto e atado ao barco, é abocanhado por vorazes e traiçoeiros tubarões. Moço, eu li o livro e ignorei a parábola; velho, eu reli o livro e compreendi a fábula em sua bela e tenebrosa densidade. O marlim destroçado somos todos nós que temos dentro de nossas vidas tubarões, meninos e Santiagos com força para morrer de pé, lutando por melhores histórias.
Hoje, eu vejo que uma das gratificações de uma longa vida é poder revisitá-la. É ser capaz de revê-la nos seus esplendores, medos, dúvidas e angústias. E qual não foi a minha surpresa quando me encontrei - agora velho - com o velho Santiago do velho Hemingway e revivi essa pescaria fracassada. Quantas vezes questionei-me se, alguma vez, pesquei um marlim. O que significa pescar um gigantesco e desejável marlim para um velho? Seria mandar tudo às favas e começar de novo? Mas como começar, se chegamos ao fim da linha? Seria ter o seu trabalho reconhecido? Seria ganhar uma loteria que pudesse ampliar o seu modesto patrimônio de professor 20 vezes em quatro anos? Seria receber de volta os presentes que distribuiu ao longo de sua vida? Seria viver a sua solidão em pleno diálogo consigo mesmo, procurando esquecer as perdas e abafar a devastadora dor de ver a pessoa amada perder a alma?
Por outro lado, o que é para alguém no fim da vida testemunhar a sua maior obra ser destruída por tubarões? Esses tubarões que, invisíveis, vivem à nossa volta e nos obrigam a descobrir a inveja e o ressentimento no lugar da fraternidade e do companheirismo? Mas o que fez Santiago quando chegou à sua praia com a carcaça inútil do peixe com o qual havia lutado a sua tremenda batalha? Essas batalhas que todo velho luta diariamente contra a ingratidão, contra o abandono, contra o amor roubado pela vida e pelos deuses, contra a perda de algum ente querido, enterrado ainda quente no frio da terra?
O velho Santiago não abjurou sua vida ou amaldiçoou sua profissão ou renegou o seu destino. O que ele fez foi dormir e sonhar com leões. E amar seus filhotes e brincar com eles, tal como eu amo as pessoas que estão à minha volta.
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Desta Niterói onde vivo, envio o meu abraço e as minhas mais calorosas felicitações pelas 80 décadas de Zuenir Ventura. Mestre do jornalismo, ele escreveu uma reflexão exemplar sobre a fonte de sua juventude. Pois, quando se viu idoso, descobriu-se também mais jovem. Porque a juventude está na redescoberta, no revisitar, no reviver e, para nós, que amamos as letras, no reler e no reescrever. É delas que vem o sopro perene da vida que apaga, pois os livros terminam, mas também acendem algumas velas. Quem acha que a vida termina (e começa - mas como começar sem amor?) aos 40; quem se sente liquidado aos 60, não sabe de nada. Zuenir, aos 80, sonha com leões e, no Brasil, sonhar com leões tem a ver com a domesticação da ganância, com a busca da sinceridade, com a ultrapassagem do atraso e da ignorância. Com o saber o que é, afinal de contas, suficiente para cada um de nós.
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Esses ritos de passagem de idade - 1, 5, 10, 15, 20, 40, 80, etc... - reúnem uma primeira e uma última vez. Por isso, devem ser celebrados intensamente com quem nos dá amor e por meio desses testemunhos nos despertam o sentimento de plenitude e de coragem de existir neste mundo feito de tanto gozo e sofrimento.
Celebrações são como as rimas e as simetrias das pinturas, do bom cinema, do amar sem culpa, dos bons pratos e da grande música. Simetrias que acentuam o início, o meio e o fim de alguma coisa e, com isso, realizam o contraste necessário com a vida que assusta porque não tem começo ou fim. Esses são momentos de pleno sentido, pois as festas têm sempre uma razão e, mesmo bagunçadas, elas começam e terminam.
Num mundo totalmente desequilibrado, injusto, frenético, louco e cruel para tantos, as celebrações inventam pausas, desvendam olhares, promovem comentários, anedotas e risos que são o nosso trunfo (senão o triunfo) contra a finitude: essas causas perdidas. Mas, como dizia Frank Capra, são essas causas perdidas - igualdade, liberdade, justiça, amor, altruísmo e, sobretudo neste Brasil onde somos assaltados por altos funcionários federais em rede com justificativa ideológica, honestidade! - as únicas que valem o bom combate. Capra falou das causas perdidas num revolucionário filme de 1939!