Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.
24.06.2011 - 19h10
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.
24.06.2011 - 19h10
Como observador da vida cultural e política brasileira, tenho reparado num fato curioso: os intelectuais petistas não parecem sujeitos a certas restrições tradicionalmente tidas como aplicáveis a todos os intelectuais, indistintamente.
O argumento que pretendo desenvolver é um pouco trabalhoso: admito-o sem contestação. Farei, pois, o possível para não colocar o carro adiante dos bois.
Comecemos pelo básico: o que é, afinal, um intelectual? Que condições ou requisitos o definem? Minha conceituação compõe-se de quatro elementos. Comento-os a seguir, passo a passo.
Primeiro, como é óbvio, um nível elevado de conhecimento . Um intelectual digno deste nome tem uma formação muito superior à média da sociedade. E mais, ele não se contenta em possuir um dado estoque de conhecimentos; empenha-se continuamente em aumentá-lo, reordená-lo e aprimorá-lo.
Por este critério inicial, não creio que alguém conteste o status “intelectual” dos intelectuais petistas. Não vou listar nomes, nem preciso. Os geralmente citados são acadêmicos de escol, vários deles professores titulares nas melhores universidades do país. Outros são profissionais liberais. Entre eles há também clérigos notáveis por sua cultura, jornalistas renomados, e artistas da melhor estirpe: músicos, artistas plásticos, escritores…
Outro critério relevante é a presença pública. Por intelectual geralmente se entende alguém que participa intensamente das discussões da sociedade; alguém que cinzela e amplifica a linguagem, as imagens e os símbolos de que as pessoas “comuns” se valem para compreender a sociedade e a si mesmas. O intelectual é portanto alguém que ajuda a sociedade a se compreender, proporcionando-lhe os espelhos (históricos, factuais, morais) de que ela necessita.
Também aqui, ninguém contestará as credenciais intelectuais dos intelectuais petistas. Dúzias deles se dedicaram desde o início, e de corpo e alma, ao projeto do Partido dos Trabalhadores. Ajudaram a construir a imagem de uma sigla aguerrida, identificada com os pobres e comprometida com a ética.
Eis aí duas condições: o conhecimento e a presença pública. São condições necessárias, mas a meu ver não suficientes para caracterizamos a figura do intelectual.
Passo, pois, ao meu terceiro critério: a encarnação de certos ideais de humanidade. Desde o século 18, a figura do intelectual tem a ver com uma missão, se assim o posso dizer: a de encarnar ideais expansivos (e não restritivos) da experiência humana. Esta idéia remonta ao Iluminismo e à Revolução Francesa. Desde então, em todo o Ocidente, o termo intelectual designa o indivíduo culto que encarna publicamente os ideais de fraternidade, igualdade e liberdade. Ao representar esse papel, esse indivíduo passou a ser identificado como “progressista”, ou de “esquerda”. De “direita”, “regressistas” ou “reacionários” (adjetivos quase sempre pejorativos) seriam os descendentes de Edmund Burke, Chateaubriand, De Maistre e outros que se opuseram (reagiram) à Revolução Francesa e por isso se tornaram conhecidos como defensores de uma sociedade restritiva e não expansiva.
“Seriam” os descendentes de Burke… Uso o condicional para ressalvar que essa descrição clássica do intelectual pende para a esquerda e para a revolução, como se nenhum valor houvesse na defesa de outros valores, ou na recomendação de cautela quanto à possibilidade de realizar tais valores em certas circunstâncias ou por certos meios. Desqualificar um Burke como intelectual seria evidentemente um dogmatismo e um ideologismo inaceitáveis. Não tenho como elucidar uma questão desta complexidade no espaço de um post, mas confio em que o contexto de minhas observações a esclareça suficientemente.
Pensando no mundo atual, parece-me fora de dúvida que a defesa dos direitos humanos, onde quer que eles estejam sendo violados ou ameaçados, é uma parte fundamental desse ideário histórico de progresso e expansão da experiência humana. E aqui surge minha primeira dúvida. Por este critério, o status intelectual da intelectualidade petista, ou de boa parte dela, talvez deva ser reavaliado.
Antecipo-me, porém a uma possível objeção.
A reavaliação que a meu juízo pode e deve ser feita não se refere prioritariamente ao que aconteceu no Brasil durante os governos militares. À parte os que se engajaram na luta armada – dado que sobre ela ainda há pontos obscuros-, os petistas integraram a frente de oposições ao regime autoritário: quanto a isto não há dúvida. Muitos deles participaram ativamente não só das lutas políticas e eleitorais, mas também dos protestos e ações que foi necessário empreender contra os excessos da repressão, responsáveis por torturas e por algo entre 500 e 600 mortos e desaparecidos.
O que me permito pôr em dúvida é se os intelectuais petistas têm se preocupado em denunciar violações de direitos humanos sabidamente endêmicas em outros países. Admitamos, para não complicar o argumento, que os governos do Irã e da China dificilmente se comoveriam com protestos de letrados brasileiros.
Mas como se explica o silêncio da intelectualidade petista em relação a Cuba? Por que ela endossa, no mínimo por omissão, o tratamento sabidamente brutal que o governo cubano sempre outorgou a seus prisioneiros políticos?
Observe-se que vários dos intelectuais que optaram pelo silêncio na questão dos direitos humanos não se cansavam (ou não se cansam) de aplaudir os feitos “revolucionários” da ilha socialista. Ora, se seu aplauso era potencialmente eficaz como ação política, é de se presumir que também o fosse (ou seja) a sua eventual condenação às atrocidades cometidas pelo Estado cubano.
Cada um comporá como quiser a sua lista pessoal de atrocidades . Uma possibilidade é voltar aos primeiros dias da revolução vitoriosa e incluir os cinco ou seis mil fuzilamentos. Outra, menos abrangente, é fazer a conta a partir dos escritores, poetas e jornalistas condenados a mais de dez, em alguns casos até a vinte anos de prisão. Ou, se preferem, considerar só os casos de presos políticos que se tornaram mundialmente conhecidos no início do ano passado, como o infeliz Zapata, morto depois de 85 dias em greve de fome.
Em quarto e último lugar, eu penso que a figura do intelectual também se caracteriza pela coerência – ou seja, por um pensamento razoavelmente encadeado ao longo de sua vida.
Entendamo-nos quanto a este ponto. É óbvio que ninguém está “proibido” de mudar. Todo intelectual que se preza trata de enriquecer continuamente os seus conhecimentos, percepções e avaliações. Se assim não fosse, não haveria evolução, pois evoluir implica acrescentar algo ao que já se possui. O que se presume é que um intelectual de verdade é capaz e estará sempre disposto a dar as razões de uma eventual mudança, restabelecendo dessa forma a continuidade ou coerência de seus conhecimentos e de suas avaliações morais.
É certo que este texto não trata de pesquisadores adstritos a seus laboratórios ou de eruditos aconchegados em suas torres de marfim. Trata de intelectuais ativos na vida pública, e mesmo na política partidária.
Sendo a vida política o que ela é, a acusação de (in)coerência pode ser uma arma assaz virulenta. Anos atrás, quando da nomeação de Fernando Henrique Cardoso para o ministério da Fazenda, alguém lhe atribuiu a frase “Esqueçam o que eu escrevi”. Popularizada, essa suposta confissão de incoerência foi empregada contra ele durante anos a fio.
A intelectualidade petista naturalmente não se fez de rogada. Que melhor “prova” poderia haver da conversão de FHC ao “neoliberalismo”? Afeiçoado como sempre foi ao debate de idéias, Fernando Henrique retornou inúmeras vezes a esse episódio e até publicou um pequeno livro intitulado “Relembrando o que escrevi – da reconquista da democracia aos desafios globais” (Editora Civilização Brasileira).
O que me levou a lembrar o uso político daquela suposta confissão de incoerência foram duas matérias sobre privatização divulgadas hoje pelo jornal O Estado de S. Paulo: uma sobre a privatização da operação de aeroportos e a outra sobre planos para a privatização de portos.
Na primeira matéria, da autoria do jornalista Gláuber Gonçalves, o jornal informa que a entrada de capital estrangeiro no setor aeroportuário é inevitável, e acrescenta: “grandes construtoras brasileiras travam uma corrida para fechar parcerias com operadoras internacionais, de olho na privatização dos aeroportos de Guarulhos, Campinas e Brasília”.
O professor Marco Aurélio Cabral, da Universidade Federal Fluminense, esclarece a razão de tal corrida: a falta de experiência das empreiteiras [brasileiras] em operações aeroportuárias. “Nossas construtoras têm excelente engenharia de grandes obras e levam muita competitividade para um projeto, [mas] não são especialistas em operação aeroportuária”.
A segunda matéria diz respeito ao setor portuário. Segundo as jornalistas Renata Veríssimo e Célia Froufe , o governo agora prepara as diretrizes para transferir ao setor privado a construção de novos portos marítimos no Brasil”. A Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) já teria identificado 45 áreas consideradas prioritárias para o recebimento de investimentos privados.
A novidade – as autoras prosseguem- é passar a conceder portos organizados para a iniciativa privada. Manaus será o primeiro”. Nos portos denominados “organizados” ou “públicos”, a filosofia até agora era admitir a participação privada na construção, mas não na operação do porto. Portanto, o que agora se tem em vista, segundo a matéria, é uma privatização de verdade, com capital privado tanto na construção como no gerenciamento interno de tais portos.
Outro dado interessante é que essa nova política vem sendo discutida desde 2009: “a demora da Secretaria de Portos na definição do Plano Diretor, que permitirá dar início ao processo, está sendo criticada pelo setor privado e investidores e já começa a incomodar o Palácio do Planalto. Está sendo cogitada a possibilidade de a presidente Dilma Rousseff estabelecer as diretrizes por decreto”.
Não vou me estender sobre o fato de as discussões sobre o novo modelo para os portos terem começado em 2009 , mais uma evidência do caráter farsesco da gritaria contra a privatização na recente campanha eleitoral.
Que têm os intelectuais petistas a ver com portos e aeroportos? Realmente, aqui há um elo perdido, e com ele tratarei de concluir este longuíssimo texto.
É óbvio que nada tenho contra a presidente Dilma reconhecer a necessidade de capital estrangeiro nos aeroportos e da privatização de portos. Crítica, se eu fosse fazer alguma, seria quanto à protelação de tais decisões – seja por motivos ideológicos ou eleitorais -, durante os 8 anos do Sr. Luís Inácio, com gravíssimo prejuízo para o país.
Quanto aos intelectuais, a questão é o mínimo de coerência que a sociedade tem o direito de esperar deles. Em regimes totalitários, os intelectuais a serviço do partido único mentem sobre tudo e desmentem qualquer coisa sem o menor pudor; mas faz sentido designar gente desse tipo como intelectuais?
No Brasil de hoje existe, bem ou mal, uma democracia; diria até uma democracia vibrante, em certos momentos Num regime de liberdade, existe uma verdadeira esfera pública na qual o sentido das palavras precisa ser assegurado; em tal situação, a compostura do verdadeiro intelectual não lhe permite fazer vistas grossas ao emprego leviano ou mentiroso de determinadas expressões.
No vernáculo petista, até poucos meses atrás, privatização era sinônimo de “privataria” + “neoliberalismo”, termos que por sua vez sugeriam uma mescla de burrice com roubalheira e traição à pátria.
Essa teria sido a marca registrada do governo Fernando Henrique, a julgar pelo discurso dos políticos e militantes petistas, ao qual não faltava o endosso, por ação ou omissão, dos intelectuais ligados à sigla.
Ora, se na década passada privatizar significava “privataria” e “neoliberalismo”, os dois substantivos aplicam-se da mesma forma ao governo atual. Se não se aplicam, tampouco valem para o governo Fernando Henrique.
Neste ano da graça de 2011, em nome da coerência e da honestidade intelectuais, seria de bom alvitre nos entendermos quanto a este ponto.
Bolívar LamounierO sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.