Páginas

sábado, 4 de junho de 2011

Lula em Cuba, Dilma perdendo tempo e as trapalhadas do MEC: estragos que a ideologia faz.

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para acessá-lo, clique aqui.


Lula, em visita a Cuba, teria elogiado a reforma econômica deflagrada por Raúl Castro. Digo “teria” por precaução, porque ouvi isso de relance no rádio, mas o elogio é perfeitamente normal. Não fazê-lo poderia até parecer descortês.   
Normal, mas fiquei mesmo assim intrigado com a notícia. A reforma cubana, como se sabe, é bem estranha. Os Castro e o PCC (Partido Comunista Cubano) negam tratar-se de uma rendição ao capitalismo. Dizem que é  um “aprimoramento” do modelo socialista. Mas o que eles vêm de fato tentando fazer é um mega-ajuste fiscal, com a demissão de centenas de milhares de funcionários públicos. Acho que Margaret Thatcher teria mais razões para aplaudi-lo que Lula.
Ajuste fiscal indolor  não existe, mas o caso cubano apresenta uma peculiaridade dramática: a virtual inexistência de um setor privado. Até recentemente – não sei qual é a situação hoje-, até as barbearias eram estatais. A questão, portanto, é do que os funcionários demitidos vão viver. Onde vão trabalhar.
Dizer que o Estado vai incentivar os pequenos empreendimentos, que vai facilitar isto e aquilo, é fácil. Mas o “fato concreto” – para lembrar uma expressão muito ao gosto do Lula – é que o setor privado de Cuba só existe como licença literária.
Foi por isso que a notícia me deixou intrigado. O que foi, afinal, que Lula elogiou? As brutais 500 mil demissões que o comandante Castro parece disposto a fazer? Ou o fato de ele as estar fazendo a passos de cágado, pela singela razão de não saber como os demitidos vão se virar?
Estou falando de Cuba, mas hoje o que de fato me interessa é o fenômeno da ideologia. Este sim, é o grande mistério, e Cuba o ilustra à perfeição. Por duas razões.
Primeiro, a rigidez do enfoque ideológico ajuda a compreender por que a ficha demorou tanto a cair. Aos 50 anos, o socialismo cubano é obviamente um fracasso. Um retumbante fracasso. Não vejo como alguém de bom senso possa discordar disso. E que me perdoem os leitores de esquerda a quem eu possa estar irritando: se não é uma experiência fracassada, por que o governo resolveu ajustar a economia de maneira tão drástica? Drástica e arriscada, pois terá que consertar o avião (engendrar um setor privado) em pleno vôo (sem postergar as demissões). Esta é a situação a que o país foi levado pela demora da cúpula cubana a perceber o beco sem saída em que se metera.
O enfoque ideológico também explica a sem-cerimônia com que os revolucionários de 50 anos atrás se eternizaram no poder e se transformaram numa ditadura gerontocrática. Raúl Castro está com 80 anos, Fidel com 84 ou 85, não me lembro. Aqui estamos falando de uma rua de mão-dupla. O germe totalitário impregnou toda a máquina política do país, liquidando no nascedouro  qualquer veleidade de renovação ou oposição. Por sua vez, o envelhecimento dos Castro e da cúpula afastou a possibilidade de uma reciclagem da ideologia.
Cuba e a Coréia do Norte são dois entre os muitos sistemas totalitários que existiram no século 20. A URSS e todo o Leste Europeu, o Camboja e outros integraram essa categoria; a China de certo modo ainda a integra. Um traço comum importante entre eles é uma “elite” disposta a impor a seu povo, a ferro e fogo, a sua visão alucinada da sociedade: sua idéia pretensamente científica a respeito do funcionamento atual da sociedade e do futuro luminoso que a espera, com a condição, naturalmente, de que ela se eternize no controle do Estado.
Falei da ideologia em Cuba e fiz menção a outros regimes ditos socialistas, na verdade totalitários. Contudo, ideologia e totalitarismo não são sinônimos. Em regimes totalitários sempre há um “ideologismo”, um modo rígido e dogmático de pensar, mas o enfoque ideológico manifesta-se em muitos graus e configurações diferentes.
No Brasil, desde a transição, o principal exemplo de ideologia política tem sido a do PT. Seu traço mais importante parece-me ser aquela tendência a contrapor o “povo” às “elites”; um visão esquemática, maniqueísta, diria mesmo messiânica, cuja simplicidade sem dúvida ajudou o partido a recrutar militantes e a crescer eleitoralmente.
Desde o momento em que Lula conseguiu impor sua estratégia e se tornar presidência, o messianismo foi diminuindo, como é óbvio; surgiu então uma diferença bastante nítida entre seus quadros superiores (sindicalistas, políticos profissionais, intelectuais bem acomodados na estrutura universitária etc) e a base formada por simples militantes no seio do clero, do meio estudantil e dos movimentos sociais, principalmente, na qual ainda é possível discernir um pouco daquele esquematismo original. É claro que  aqui estou me referindo a gente que serve à ideologia petista, não a lideranças ou mesmo militantes que apenas se servem dela.
Com todas as ressalvas acima, o fato é que o petismo e outras vertentes do pensamento de esquerda conservam uma presença importante na vida política e cultural do país. E muito mais para o mal que para o bem, segundo a minha escala de valores.
Na esfera econômica, a ideologia fez um estrago considerável. Nos 8 anos de Lula, a visão estatizante paralisou os investimentos na infra-estrutura; nos primeiros 5 meses de Dilma, existe a promessa de alguma flexibilidade no tocante à participação privada na expansão de alguns aeroportos, mas, no combate à inflação, a demora e a timidez sem dúvida se devem a resquícios ideológicos.
Na área das comunicações, como se recorda, o enfoque ideológico do petismo e do “movimentismo” a ele associado se manifestou de forma vigorosa nos últimos dois anos do governo Lula. Basta lembrar a logorréia  do “controle social da mídia” e os ataques do próprio Lula à imprensa.
Do governo Dilma se esperava uma abordagem mais realista e pragmática, mas na esfera da educação não é o que estamos vendo. Dou-lhe o benefício da dúvida, pois, na verdade, é difícil dizer se os problemas  nessa área decorrem mais da ideologia ou da incompetência. Seja como for, vimos o MEC comprando grande quantidade de livros com um evidente viés ideológico-partidário; em seguida, livros inspirados na pedagogia no mínimo duvidosa no ensino do idioma, no tocante à relação entre a língua culta e a popular, e, finalmente, ao desnorteio total no tocante à homofobia.
Há quem veja as críticas ao MEC como uma “tempestade em copo d’água”. Não é o meu caso.  No meu modo de ver, as trapalhadas têm método. Elas não são as únicas manifestações de uma pretensão de hegemonia ideológica nas esferas educacional e cultural. Concordo, porém, que os piores danos são os devidos à incompetência.
A razão principal das seguidas confusões e do avanço de certa visão ideológica é com certeza a inexistência de uma política educacional digna do nome. Como tem observado o sociólogo José Roberto Bonifácio, as trapalhadas recentes não estariam acontecendo – ou não teriam tamanha dimensão – se o governo tivesse uma orientação mais clara quanto a objetivos e prioridades; sobretudo quanto à necessidade de melhorar a qualidade do ensino e o acesso das camadas mais carentes ao nível superior, sem comprometer a qualidade.
Com a entrada em cena da corrupção, as coisas pioraram bastante. Sentindo-se vulnerável, a Sra. Presidente da República sentiu-se forçada a atender exigências de minorias organizadas – que, por definição, têm como cuidar de si ou compensar suas perdas –quando deveria estar pensando em políticas equalizadoras das chances de vida para as maiorias atomizadas e dispersas, ou seja, não organizadas.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.