Artigo de Pedro Malan, publicado originalmente no Estadão. Para acessá-lo, clique aqui.
12 de junho de 2011 | 0h 00
12 de junho de 2011 | 0h 00
Pedro S. Malan - O Estado de S.Paulo
"Quando quarenta invernos assediarem teu semblante" é a abertura de um dos mais belos sonetos de Shakespeare. À época, 40 anos era uma idade respeitável, a beleza era peregrina e, não mais que de repente, a força e o espírito da juventude se haviam esvaído. Hoje, chegar aos 80 invernos não é a raridade excepcional de antanho. Muitos - e muitas - o fazem. Mas chegar aos 80 mantendo extrema lucidez no infindável diálogo entre passado e futuro (seu próprio, do seu país e do mundo) é raro, muito raro. Quando, além disso, se chega aos 80 com invejável sentido de humor, marcante presença na vida política e no debate de temas de interesse público, é quase um desaforo.
Pois bem, é o que sempre fez, e faz hoje, nessa idade, o presidente Fernando Henrique Cardoso, com quem tive o privilégio e o prazer de trabalhar na última década de meus quase 40 invernos de serviço publico. A amizade, que já existia, só fez se consolidar desde então. Espero que, quando o Brasil puder alcançar um mínimo de perspectiva histórica sobre nosso passado recente, se possa fazer justiça a Fernando Henrique Cardoso - à sua pessoa e a seu governo. Que venham os 90 invernos. Afinal, como escreveu Chaucer, "tão curta a vida, tão longo o ofício de aprender".
O texto acima, com o título Oitenta invernos: homenagem a FHC, deve estar disponível nos próximos dias num site que recolheu contribuições de dezenas de amigos e antigos colaboradores do ex-presidente, parte das comemorações de seu aniversário, no dia 18 agora.
Por que utilizá-lo aqui? A primeira razão (e a menos importante) é que há exatos oito anos comecei a escrever neste generoso espaço. E meu primeiro artigo (Falsos dilemas, difíceis escolhas) abria com a seguinte frase (em junho de 2003): "Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade política e nível do debate econômico - apesar das aparências em contrário". O governo Lula - à época em que isso foi escrito - tinha exatamente a mesma idade do governo Dilma Rousseff, que chega agora a seu primeiro e turbulento inverno. Com problemas domésticos não triviais à frente, tanto na área política quanto na área econômica - e as águas de ambas não correm sempre em leitos distintos, como muitos parecem pensar. E não é demais lembrar que a atual presidente não contará com o contexto internacional tão extraordinariamente favorável que tanto beneficiou o País e o governo anterior de fins de 2002 a fins de 2008 - fato jamais reconhecido por Lula.
A segunda razão é que vivi de modo intenso, ou acompanhei com enorme interesse, várias transições de governo: de Itamar Franco para FHC, deste para Lula e de Lula para Dilma. E, por que não dizer, de FH 1 para FH 2 e de Lula 1 para Lula 2. Ao cabo de todos esses subperíodos, isto é, em todos os junhos (de 1995, de 1999, de 2003, de 2007 e agora de 2011), eu poderia ter parafraseado a abertura do artigo de 2003: "Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que...". Achava, como acho, que o Brasil tem um lado moderno que, "apesar das aparências em contrário", está, ainda que muito gradualmente, prevalecendo sobre nosso lado anacrônico - que não pode e não deve ser subestimado.
Esse mesmo artigo de 2003 terminava com a seguinte observação: "Não estamos começando do zero um processo de criação das bases para um sustentado crescimento com mudança estrutural e aumento de produtividade. Esse processo já vem ocorrendo há muitos anos e é importante que lhe seja dada continuidade. O mesmo se aplica ao desenvolvimento social. Em outras palavras, o que é legítimo e razoável esperar do governo Lula é que possa entregar a seu sucessor um País melhor do que aquele que recebeu. Como fez o governo FHC".
Como fizeram governos anteriores. Como fez Lula (ainda que se achando uma espécie de "inventor do Brasil"). Como esperamos que faça Dilma Rousseff, ainda que com o semblante de seu governo assediado pelos quatro invernos que terá de enfrentar, em condições políticas e econômicas muito menos favoráveis que as de seu antecessor. Palocci lhe fará falta.
Um estrangeiro, olhando o tamanho da base de sustentação política do atual governo no Congresso Nacional, poderia achar que os mais de 70% de apoio ao governo permitiriam ao Executivo um navegar tranquilo pelas águas da política, assegurando a governabilidade e a harmonia com o Legislativo. Mas, como notou Bobbio "nos países não apenas capazes de formar um governo, mas de efetivamente governar, existe uma relação entre grupos e programas em torno de certas questões de fundo... (Mas) num sistema de partidos complicados, onde por governabilidade se entende até a difícil operação de formar um governo, não se fazem alianças com base em opções de fundo... (Mas através de processos) que por vezes tornam impossíveis as opções de fundo".
A presidente Dilma Rousseff sabe disso, e citou mestre Rosa em seu discurso de posse: "... a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem". Ninguém duvida que a nossa presidente tenha coragem. Assim como tem gana, garra e determinação. Mas o exercício do cargo, num país complexo como o nosso, uma democracia de massas, um sistema político precário e a voracidade infinda das varias facções de seus correligionários e de suas bases políticas, exige muito mais do que a sempre necessária coragem.
O Brasil é um país admirável, mas complexo de entender e difícil de administrar, política e economicamente, como cedo descobre quem se propõe a fazê-lo. Assim como Lula, Dilma dá a impressão de que chega ao seu primeiro inverno como presidente com a percepção de que nada é fácil - e tudo é mais duro do que antes parecia.
ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC