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domingo, 5 de junho de 2011

Interesse público

Artigo de Merval Pereira, publicado originalmente em O Globo, e replicado aqui, a partir da publicação no blog de Ricardo Noblat

05.06.2011 | 8:01h.


Merval Pereira, O Globo
Estamos diante de uma situação típica de governo de visão política autoritária, que considera que certas informações não são do interesse público, como se coubesse ao governo definir que informações a opinião pública tem o direito de saber.
Assim como Palocci disse que o faturamento de sua “consultoria” não é de interesse público, também os boletins médicos não esclareceram à população que a pneumonia da presidente Dilma era dupla, e não “leve”.
A relação de doenças com que a presidente Dilma lida, revelada pela revista Época, é outro exemplo de como, no Brasil, os agentes públicos não consideram seu dever revelar questões que, embora íntimas, tornam-se de interesse público pela circunstância de fazerem parte da vida de um político que tem responsabilidades pelos destinos do país.
Em vários países, onde o cidadão tem mais noção dos seus direitos, como nos Estados Unidos, seria impossível alguém concorrer à presidência da República sem revelar os mínimos detalhes de sua condição física.
Justiça seja feita, esconder doenças não é uma inovação do governo Dilma.
O exemplo mais óbvio é a foto do presidente eleito Tancredo Neves cercado de médicos, sorrindo como se estivesse se recuperando, quando havia um aparato por trás dele assegurando que as aparências não revelassem a gravidade de seu quadro.
Diz-se que o governo pretende fazer uma pesquisa de opinião para saber qual foi a reação do eleitorado às supostas explicações do Ministro Antonio Palocci, e a partir daí estabelecer uma linha de ação.
Não me parece provável que a entrevista de Palocci ao Jornal Nacional de sexta-feira tenha tido a capacidade de dissipar as dúvidas do público em geral, embora sua aparente tranquilidade possa ter dado às evasivas com que respondeu uma aparência de esclarecimento.
Mas será preciso mais do que uma pesquisa de opinião para que o principal coordenador político do governo recupere sua operacionalidade.
O (ainda) ministro Antonio Palocci pode ter ganhado um fôlego, do ponto de vista do governo, com a entrevista ao Jornal Nacional, mas continuará com problemas para cumprir suas funções na coordenação política do governo.
A reação dele à lembrança de que o deputado federal Garotinho o tinha classificado como “um diamante de R$ 20 milhões” é típica de quem tem que ter cautela até mesmo com figuras políticas do baixo nível do ex-governador do Rio.
Ao pedir que acreditem em sua boa-fé, Palocci está simplesmente pedindo à opinião pública que acredite nele, quando seu passado recente indica que suas versões nem sempre coincidem com o que realmente aconteceu.
Absolvido pelo Supremo Tribunal Federal da acusação de ter sido o mandante da quebra de sigilo do caseiro Francenildo, sabe-se agora, através de uma nota oficial da Caixa Econômica Federal, que o que todo mundo desconfiava foi o que realmente aconteceu: a quebra do sigilo foi autorizada pelo gabinete do então ministro da Fazenda.
O presidente da Caixa na ocasião, fulano de tal, foi condenado pelo STF como único responsável pela ação criminosa, e não se defendeu oficialmente, provavelmente por lealdade política.
Quando coube à instituição CEF a defesa oficial, a acusação ao ministério da Fazenda surgiu, cristalina, agora já sem possibilidade de colaborar com a condenação de Palocci.
Pedir que acreditem na sua boa-fé pela segunda vez em tão pouco tempo é pedir demais ao cidadão comum, tão calejado em assistir a manobras de membros do governo para esconder questões que interessam sim ao público, como o estado de saúde da presidente Dilma ou as contas do deputado dublê de consultor que, no último ano, teve ainda o terceiro papel de coordenador da campanha presidencial da candidata oficial.
Imaginar que ele pudesse exercer todos esses papéis simultaneamente sem misturá-los é dar a Palocci um cheque em branco que nenhum político deveria receber, justamente por que políticos têm que prestar contas permanentes à opinião pública, sem que o ficariam acima das leis.
O Ministro Antonio Palocci defende sempre que sua empresa cumpriu todos os ritos legais, sem que nunca tenha havido uma acusação sobre isso contra ele. Talvez por que a parte formal de sua “consultoria” seja a mais fácil de provar.
No entanto, e sem que esteja inferindo que tenha acontecido isso – embora circulem em Brasília muitas hipóteses nesse sentido – dar notas fiscais para “esquentar” dinheiro de origem duvidosa é a prática mais comum em empresas de fachada criadas justamente com este fim.
O governo vai tentar sair das cordas nos próximos dias, mas se PT e PMDB continuarem sentindo cheiro de carne queimada mesmo depois da entrevista, continuarão a deixar Palocci no sereno, negando-lhe o apoio político de que necessita.
Ele mesmo, ao assumir como uma questão pessoal a crise política em que envolveu o governo, assumiu a versão oficial do PT, que quer dissociar sua imagem da do governo.
Em vez de salvar sua pele, essa manobra pode colaborar para apressar sua saída.
Aliás, se considera mesmo que o que está em jogo é uma luta política contra ele, Palocci deveria ser o primeiro a pedir para sair, para livrar o governo desse ônus.
Ele ressaltou que as acusações são da ocasião em que era deputado, e não ministro do governo Dilma. A mesma defesa, com sinais trocados, que o então ministro José Dirceu tentou quando se viu envolvido com o mensalão: não poderia ser cassado como deputado por que exercia o cargo de ministro da ocasião.
Nas duas ocasiões, as figuras públicas de Palocci e Dirceu são indissociáveis de seus atos, sejam quais forem os cargos que ocupem.