Artigo de Roberto Romano, publicado originalmente no Estadão desta terça-feira. Para acessá-lo, clique aqui.
21 de junho de 2011 | 0h 00
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
21 de junho de 2011 | 0h 00
Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
A palavra "ética", no Brasil, já foi incluída no pacote coletivo de risadas, algo bom para as caricaturas e nada mais. Quem retroage aos anos 90 do século 20 testemunha: na imprensa e nos debates universitários da época, as mesmas pessoas e os mesmos partidos que exigiam transparência dos governantes hoje zombam da opinião pública.
Como derradeiro fruto das campanhas em prol da lisura, a Câmara dos Deputados planejou o primeiro Seminário sobre Ética e Decoro Parlamentar (dezembro, 2003), que deveria ser realizado no Salão Nereu Ramos. Ali, perto de 500 pessoas poderiam ser acolhidas. Convidado, cheguei antes do início. Como o Partido dos Trabalhadores era o campeão da "ética na política", imaginei que o evento reuniria inúmeros petistas e pessoas da esquerda. No imenso espaço foi ocupada apenas a primeira fila de poltronas. Seria natural, disse aos meu botões, dado o atraso costumeiro em reuniões similares. Mas os trabalhos foram até o fim com audiência diminuta. Entendi: o tema não tinha mais serventia para quem chegara (finalmente!) ao Palácio, deixando a praça para os que ainda acreditavam em "bravatas".
Ética na política, mercadoria com validade vencida. Depois de 2003, quanta ética, quanto decoro notamos no Estado brasileiro!
O seminário foi transferido para uma sala de comissão e não a lotou. Nos corredores vi antigos exemplares de palavrosos "éticos". Muitos deles participaram comigo, pelos Brasis afora, de atos em defesa da nitidez administrativa. Nenhum deles foi ao debate. Naquele dia, nos corredores da Câmara eram definidos urgentes acertos políticos. Ao mesmo tempo, cultos religiosos (contrários à ordem legal) eram praticados aos berros. Tudo valeu para mandar às urtigas a reflexão sobre a moralidade.
Antes de me dirigir aos presentes, ouvi parlamentares, como o dr. Jorge Hage. Após conceitos importantes, escutei dele que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) integraria o Conselho de Transparência, a ser definido na lei de número 10.683. Tal enunciado me fez perguntar se tinha ouvido bem, se era mesmo CNBB que lhe surgira nos lábios. O conselho, esclareceu Jorge Hage, deveria "sugerir e debater medidas de aperfeiçoamento dos métodos, sistemas e estratégias de incremento da transparência, do controle e do combate à corrupção e à impunidade, com representação paritária do setor público e do setor privado, isto é, da sociedade civil".
No decreto, ainda em minuta na Casa Civil, o referido conselho reuniria o ministro da Transparência, alguém da Casa Civil, da Advocacia-Geral da União (AGU), dos Ministérios da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, da Comissão de Ética Pública. Como autoridades convidadas, representantes do Tribunal de Contas e do Ministério Público da União. Da sociedade civil, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Transparência Brasil e outras entidades. "Por fim", declarou Hage, "um cidadão brasileiro que exerça atividade acadêmica, científica, cultural ou artística, escolhido entre pessoas de idoneidade moral e reputação ilibada, cuja atuação seja notória na área de competência do conselho. Por isso, a CNBB irá participar".
Agradeci a resposta do eminente gestor, que muito respeito. Mas a minha frase foi a seguinte: "Não sei se por deformação profissional, tive a impressão de ouvir, num certo momento, o dr. Jorge Hage falar da participação da CNBB em conselho". A maioria dos presentes não percebeu a crítica: a pergunta era sobre a natureza do regime político brasileiro. Em termos populares, "o que, diabos, faria a CNBB, subordinada a um Estado estrangeiro, num conselho cujo alvo é combater a corrupção política nacional? Existiria ainda a separação de Igreja e Estado?". Digam qual o direito, para tal fato, argumentaria Immanuel Kant!
Se o nosso Estado reserva um lugar para a CNBB numa Comissão de Transparência, por que não para os representantes de outros cultos?
Oito anos se escoaram no Brasil corrupto e as notícias sobre a Comissão de Transparência lembram apenas uma utopia (ou propaganda?) delirante. Por outro lado, nas últimas eleições a candidata governista à Presidência da República foi assediada por um vagalhão confessional que chegou a configurar chantagem. Logo após o estouro do caso Antônio Palocci (fortuna sem transparência, dada a confidencialidade nos contratos entre o legislador e firmas privadas), deputados, mas também senadores evangélicos e católicos, assumiram nova pressão sobre a Presidência da República: ou seria retirado o "kit contra a homofobia" ou os santos políticos votariam... por um trabalho parlamentar contrário ao então chefe da Casa Civil.
Nem uma vírgula dos Evangelhos permite tal procedimento. A justiça - divina e humana - exige apurar os fatos e depois julgar. A troca do mencionado kit pelo acobertamento do ex-ministro Palocci, para ele, é insultuosa e, para o Brasil, catástrofe ética. A CNBB, que apoiou o golpe de Estado em 1964, abençoando o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), de 1968, e cujo lobby mina a laicidade do Estado brasileiro desde 1988, poderia mesmo integrar a republicana Comissão de Transparência?
Uma parcela da Igreja (as várias pastorais, a Comissão de Justiça e Paz e outras), que reuniu bispos e leigos, lutou contra o arbítrio, angariando respeito da cidadania, então amordaçada pela censura e pela repressão. A CNBB não deu o mesmo exemplo. A façanha dos políticos que hoje usam o cristianismo evidencia que seu elo com o poder não é de ordem espiritual, mas de interesse mundano. Os santos chantagistas do Congresso deveriam fazer muito jejum de cargos públicos ou benesses e, sobretudo, ler e meditar sobre o Evangelho Segundo Mateus (4, 1-11).
FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP), É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ''O CALDEIRÃO DE MEDEIA'' (PERSPECTIVA)