Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente no blog do autor no site da revista Exame. Para ler o original, basta clicar no título acima.
08.05.2011 - 15h26
Bolívar Lamounier
O país está sem oposição: eis a queixa que a classe média vem fazendo insistentemente desde o início do ano. O crédito de confiança que todo mundo deu a Dilma Rousseff está minguando, a inflação de 6.51 é uma séria possibilidade de retrocesso, irregularidades começam a despontar em vários setores…, e a oposição, nada.
A indignação e os impropérios que permeiam as “cartas do leitor” e as redes sociais são mais que compreensíveis, mas não são suficientes. A mencionada situação de orfandade a que me refiro está a exigir um esforço mais sustentado de reflexão.
Parece-me útil distinguir três aspectos, ou três níveis de análise: o quadro político-partidário, o andamento do governo Dilma e a opinião pública, ou seja, os que compartem o mal-estar a que acima me referi.
A conjuntura político-partidária obviamente não poderia ser pior.
Do lado governista, a aliança PT- PMDB e seus apêndices cumprem o script que lhes foi reservado. Podem espernear à vontade no que toca à repartição das benesses, mas devem permanecer calados quanto ao restante.
Quanto à oposição, não resisto a citar, com alterações apenas de forma, um comentário da leitora Maria Amélia de Oliveira Nogueira: “a oposição parece preocupada apenas em lamber suas próprias feridas; perde-se em suas discussões intestinas e em seu tosco rame-rame. Kassab forma seu novo partido, Serra não sabe se apóia o Kassab ou não, Alckmin chora a perda do Chalita e execra o que o Serra fez e Aécio não consegue decidir se é light, pró-PT ou tico-tico no fubá. Enquanto isso o Fernando Henrique fala sozinho, sem repercussão prática no PSDB e o “cupim”, que é o PT, fica à vontade para se alojar nas entranhas deste pais.
Essa é a situação, não há como negar. O que eu posso acrescentar não melhora em nada o quadro acima esboçado. O DEM continua sem rumo, talvez até sem futuro. O PSDB tem um cerne robusto – o legado de Fernando Henrique -, mas, ironia das ironias, nenhum dos três líderes mencionados no parágrafo anterior o assume de peito aberto. Concentram-se numa disputa sem grandeza, pois sem uma agenda digna do nome e sem uma postura oposição, o capital político do partido poderá se esvair de uma hora para outra.
Quem herdará o espólio do PSDB, se ele for de fato para o brejo? O PSD de Kassab? Não quero fazer um pré-julgamento taxativo, mas devo confessar o meu ceticismo. A meu juízo, o que levou Kassab a optar pelo vôo solo não foi um desejo de se destacar entre as forças de oposição; muito pelo contrário, foi um desejo de se juntar à situação. E é o que provavelmente fará à medida que for lidando com os problemas práticos que se antepõem à formação de um partido eleitoralmente competitivo. O tempo de televisão, por exemplo. Desconectado da oposição, Kassab irá buscar ajuda no governo, ao preço, evidentemente, de se bandear de mala e cuia para a situação.
Claro, os argumentos precedentes devem ser atenuados em vista de estarmos apenas no quinto mês do governo Dilma Rousseff. A inércia da oposição deve-se em parte a este fato. Sem um desgaste perceptível, sem erros clamorosos, como poderá a oposição nominal transformar-se em oposição efetiva?
Realmente, ainda não há um problema grave, com ampla ressonância popular. Nada há que desperte ou pelo menos incomode a sociedade de forma generalizada, aí incluídas as camadas de menor renda – o “povão”. É sobretudo por isso – por não ter um foco ao qual se opor como verdadeira força política – que a oposição nominal carece de iniciativa.
Neste começo de governo, o que poderá alterar tal quadro é sem dúvida a inflação. O governo obviamente a teme: sabe que a inflação desgasta, e desgasta de maneira simultânea e generalizada, em todas as camadas sociais. Mas também teme adotar uma política econômica contracionista, com forte redução do gasto público e do crescimento. Esta é a questão central.
Ao dizer que ainda não há um problema grave, refiro-me evidentemente a um problema capaz de corroer de forma rápida e generalizada o sentimento governista que se observa atualmente no país. A situação da infra-estrutura é catastrófica (vide aeroportos). Irregularidades e casos de corrupção começam a pipocar no Executivo, no Congresso e em governos locais dirigidos por partidos alinhados com o governismo na esfera nacional. A Copa do Mundo de 2014 periga de se transformar num monumental fiasco.
Mas nenhum dos problemas referidos no parágrafo anterior tende a produzir impactos rápidos e generalizados. Podem erodir pouco a pouco o apoio social ao governo, mas nada sugere que se acumulem e superponham a ponto de polarizar politicamente o país em termos de governo e oposição. São problemas sentidos mais fortemente pela classe média – vale dizer, pelos cidadãos que, em virtude de seu nível educacional elevado ou de seus valores, têm condições de os avaliar continuamente. Creio que a orfandade política da classe média pode ser analisada com proveito por este ângulo.
O argumento que venho tentando expor é que o sentimento de orfandade decorre de três conjuntos de fatores. Dos dois primeiros eu já falei: a crise dos partidos de oposição e a falta de uma questão catalisadora; mesmo a inflação, embora esteja subindo de forma preocupante, não atingiu ainda um nível capaz de polarizar politicamente a sociedade.
Para concluir, passo ao terceiro fator: à própria classe média. Refiro-me a uma debilidade de consciência política que me parece própria dela. Informação, não lhe falta; capacidade de se indignar, tampouco. Mas estes dois recursos são em geral neutralizados por um peculiar irrealismo e por um sentimento exagerado de impotência.
O irrealismo leva-a a desacreditar da possibilidade de mudanças e a aceitar sem sentido crítico a lenga-lenga de que todos os nossos males remontam à colonização portuguesa. A história apenas reproduz uma danse sur place, um ciclo imutável, que somente pode ser quebrado no dia do Juízo Final, por uma revolução purificadora.
Nessa representação fantasiosa do universo político e social, só existem dois pólos imensamente distantes entre si. Num extremo, uma passividade indignada, ou resignada, tanto faz; no outro, a idéia romântica de uma revolução total, apocalíptica. Instituições, imprensa, associações, reuniões, petições, abaixo-assinados, advogados, Ministério Público…, tudo isso parece carecer de existência real. Inexistindo pontos de apoio idôneos, a participação é impossível ou inócua. Como alternativas, restam, pois, somente a indignação vazia e a auto-flagelação.