Artigo de Bolívar Lamounier,, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para ler o original, basta clicar aqui.
23.05.2011 - 16h12
23.05.2011 - 16h12
Cerca de três décadas atrás, na reta final da redemocratização, a imprensa e o meio acadêmico depositavam grandes esperanças na “sociedade civil”. Não se cansavam de elogiá-la. Chegaram mesmo a vê-la como a espinha dorsal da nova fase democrática que se avizinhava.
Concluída a transição, a expressão “sociedade civil” permaneceu. Volta e meia alguém invoca essa misteriosa entidade. Mas ninguém sabe ao certo por onde ela anda, o que faz ou de que é feita. Que grupos a integram? Quais são seus objetivos, seus valores? Naquela época, havia respostas prontas para todas estas indagações. Atualmente, o que há é muita dúvida.
Seria o caso de se dizer que a ocasião faz a oposição? Décadas atrás, quando os militares governavam o país, um vasto leque de oposições se mobilizou para exigir a redemocratização. A situação política ganhou contornos claríssimos. A ocasião fez, condicionou ou instituiu – o verbo eu deixo ao gosto de cada um – a contraposição ou contradição principal. Era “nós” contra “eles”.
A “sociedade civil” era um dos esteios principais daquele “nós” que parecia não medir esforços para restabelecer a democracia. Em qualquer auditório ou praça pública, lá estava ela: OAB, CNBB, ABI, UNE, movimento disso e movimento daquilo. Todos juntos, é claro, com a oposição propriamente política (o MDB) e com os grandes líderes políticos da época: Ulisses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique, Mário Covas.
Contrapondo-se unida e com vigor à dominação militar, a “sociedade civil” parecia haver se tornado um ator permanente no sistema político brasileiro. Era um reforço e tanto para o lado do bem. Alguns anos depois, com o episódio Collor, a esperança renasceu. Aos (a essa altura) variados partidos e grupos de oposição, vieram somar-se os “caras-pintadas”. Era a juventude nas ruas, derramando verde e amarelo por toda parte, protestando, intimando o Congresso a ir em frente com o impeachment e conclamando a velharada a construir um país decente.
Mas a união de um leque de oposições tão amplo só é concebível como contraposição a um inimigo comum. Ocorre quando o quadro político se divide claramente em dois campos, como ocorreu no período militar e outra vez contra Collor . Naquelas duas ocasiões, as oposições se agruparam segundo a lógica de uma fraternidade plebiscitária.
Dali em diante, tão rapidamente como havia aparecido, a frente plebiscitária se desfez. Evaporou. Para muita gente, foi um sonho que acabou. Uma utopia política que desmanchou no ar.
Essa, no entanto, não é uma boa interpretação dos acontecimentos. Democracias não se alimentam de confrontos plebiscitários. Vivem de conflitos normais, multidimensionais e mutáveis. Os aliados de hoje podem ser adversários amanhã. Os partidos políticos tentam (e vez por outra conseguem) aglutinar parcelas da sociedade com base em novas identidades , e aqui surge um paradoxo. As democracias precisam de partidos fortes, com identidades razoavelmente claras, mas quanto mais eles se desenvolverem nesse sentido, tanto mais as dicotomias plebiscitárias tenderão a desaparecer.
A perplexidade, frustração ou sofrimento que milhões de brasileiros experimentam neste momento parece-me explicável à luz do que escrevi no parágrafo anterior. Volta e meia, em debates públicos ou nas redes sociais, alguém pergunta: cadê os caras-pintadas? Por que não estão nas ruas? Por que nós não estamos nas ruas?
O país está há vários anos às voltas com o problema da corrupção. Não a corrupção provinciana, rasteira, mixuruca , de outros tempos. Não o furto na modesta escala de um lanceiro de estação rodoviária. Não, não é disso que se trata. A corrupção a que me refiro é coisa séria. Suas características mais importantes são, por um lado, a escala, os grandes valores envolvidos; por outro, o fato de ser praticada por gente graúda, poderosa, profissional, portanto certa da impunidade.
Realmente, o que dilacera atualmente o tecido e os valores da sociedade é a corrupção; ela é o grande inimigo. Mas é pouco provável que uma nova fraternidade plebiscitária vá se formar para fazer frente a esse novo inimigo. Pouco provável porque essa não é a lógica da participação numa democracia já bastante consolidada como a nossa. E pouco provável – é triste escrever isto -, porque nossa sociedade não se opõe à corrupção com o vigor e a uniformidade que seriam desejáveis.
Se assim é, a quem podemos ou devemos recorrer?
No caso Palocci, como escrevi no post anterior, quem está a dever satisfações à sociedade é a presidente Dilma Rousseff. O ministro já deixou claro que não as dará. Ela tem várias alternativas. Se não quer demiti-lo sumariamente (como a meu ver deveria), que o afaste do cargo até que investigações sérias possam ser realizadas. Que siga o exemplo do presidente Itamar Franco em relação a Henrique Hargreaves.
À sociedade civil? Os leitores que generosamente me acompanharam até aqui certamente terão percebido o meu ceticismo. Mas justiça seja feita: a OAB já tomou posição, e o fez de maneira inequívoca, como informa a edição de hoje da Folha de S. Paulo:
“O presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante, se disse ‘indignado’ com o fato de a empresa do ministro Antonio Palocci (Casa Civil) ter recebido mais de R$ 10 milhões em dois meses após a eleição da presidente Dilma Rousseff.
Nos dois últimos meses do ano passado, a empresa levou mais da metade desse valor.
“Pode-se deduzir que ele teria recebido isso como uma compensação pela campanha, e que teria de ser paga antes de ele assumir o ministério. É muito coincidente”, afirmou.
Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.
Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.