04.05.2011 - 17h07
Bolívar Lamounier
A Folha de S.Paulo do último domingo (01.05) trouxe uma instrutiva matéria sobre a compra de livros didáticos para o ensino fundamental pelo Ministério da Educação e Cultura. Seus autores, os jornalistas Luíza Bandeira e Rodrigo Viseu, não precisaram gastar muita tinta para evidenciar o caráter partidário (leia-se petista) de várias obras destinadas ao ensino da história do Brasil.
Exemplifico citando alguns trechos da matéria. Uma das obras, “ao explicar a eleição de FHC, afirma que foi resultado do sucesso do Plano Real e acrescenta: ‘Mas decorreu também da aliança do presidente com políticos conservadores das elites’. Um quadro explica o papel dos aliados do tucano na sustentação da ditadura militar. Já em relação ao governo Lula (2003-2010), o livro cita a “festa popular” da posse e diz que o petista “inovou no estilo de governar” ao criar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social”.
Citado ao lado de uma série de dados positivos, o escândalo do mensalão é minimizado. E não preciso acrescentar que as obras examinadas pelos dois jornalistas criticam as privatizações e a suposta compra de votos para a reeleição pelo ex-presidente Fernando Henrique.
Bandeira e Viseu esclarecem que os livros oferecidos ao MEC são examinados por uma comissão, e que os adquiridos são usados por 97% da rede pública de ensino.
Em nota oficial, o Ministério “listou os critérios técnicos que usa para aprovar os livros, entre os quais um que veta obras que “fizerem doutrinação religiosa ou política”.
À parte essa nota, não me consta que até hoje, quarta-feira, o Sr. Ministro da Educação tenha vindo a público prestar esclarecimentos ou informar sobre providências que tenha tomado a respeito do fato noticiado pela Folha. O Ministério Público, também, periga de passar pela cena sem dizer palavra.
Com razão, o leitor deve estar se perguntando sobre a real importância deste assunto. Visto de forma isolada, a pergunta procede, até porque não sabemos se a compra está concluída, se os livros manifestamente partidários vão de fato ser usados em sala de aula, qual será a atitude dos professores etc etc. Cuidemo-nos, pois, contra as seduções do exagero.
Inicialmente, é mister contextualizar o fato no terreno ideológico e político ao qual os livros examinados explicitamente se referem. Como explicar que as editoras e autores dos livros em questão – interessados em vender livros ao MEC e conscientes do veto a obras de doutrinação-, adotem mesmo assim, sem a menor cerimônia, a ótica de um partido político? Suas chances de sucesso comercial não seriam melhores se diluíssem ou até se abstivessem por completo de posicionamentos desse tipo?
A incongruência é apenas aparente. O petismo não se reduz a um partido político no sentido geralmente aceito do termo. É uma máquina político-eleitoral, sim, mas é também um projeto de poder de longo prazo; projeto fundado numa visão ideológica propagada por seus quadros políticos e intelectuais de maneira contínua ao longo das três últimas décadas, ou seja, por mais de uma geração.
Um cânone sine qua non da mencionada visão ideológica é o que se pode denominar umarejeição indiscriminada da história brasileira.
De modo superficial e um tanto cômico, trata-se do “nunca antes ‘nesse’ país” do ex-presidente Lula; tomado a sério, é a pretensão de achatar toda a história pretérita do país, reescrevendo-a como uma idade de trevas e pura ganância, em contraste com o período de existência do PT – era de luz, altruísmo e genuína devoção à causa dos pobres.
Na ótica de tal projeto, a atuação no campo cultural assume uma importância que os cidadãos e partidos ditos “de direita” não dão sinais de compreender. A elaboração e a publicação de livros didáticos, qualquer que seja o nível a que se destinem, têm um objetivo pecuniário, isto é óbvio, mas esta não é a única questão em jogo. Há também uma atitude de combate, um objetivo de ganhar posições no que tange à leitura dos fatos históricos, e até mais que isso: à fixação das próprias categorias interpretativas. Neste sentido, a política institucional, a presença no parlamento etc são a parte visível de um iceberg cuja parte submersa é a luta pela hegemonia cultural.
O Estado Novo (1937-1945) desenvolveu esforços semelhantes, inclusive através do DIP, o famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda, assim como o regime militar (1964-85), que o fez em muito menor escala, através, por exemplo, dos cursos de “moral e cívica”. Mas, em tempos de democracia, o intento petista de hegemonização cultural é um caso único na história brasileira.
Os livros mencionados na matéria da Folha têm como destino o ensino fundamental. Não nos surpreendamos, porém, se a disciplina sociologia, reintroduzida no ensino médio, se tornar portadora de conteúdos funcionalmente similares aos acima discutidos. Pelo que já se conhece das propostas preparadas pelas secretarias estaduais de educação, há uma possibilidade real de os currículos se basearem na gloriosa saga das “massas” contra “a zelite”. Mesmo na rede privada, há casos de estabelecimentos e professores que já tratam textos do MST e de João Pedro Stédile como análises objetivas, e não como os panfletos que de fato são.
Sendo esse o andar da carruagem, quem se chocará se daqui a alguns anos, em vez de Kant ou Hegel, os jovens forem obrigados a reverenciar o pensamento vivo de José Dirceu ou do Lula como espécimes da mais alta filosofia?