Artigo de Augusto Nunes, publicado originalmente na página do autor em VEJA.com. Para acessá-lo, clique aqui.
26/05/2011
às 19:56Primeiro, Lula descobriu que a oposição resolveu despejar Antonio Palocci da Casa Civil “para desestabilizar o governo”. Alguém deve ter soprado que ele próprio, em 2006, livrou-se do estuprador de sigilo bancário sem que ocorressem abalos sísmicos no Planalto. O ex-presidente engatou uma segunda, comparou o consultor mais caro do mundo ao maior jogador de futebol da história e ensinou que “não se pode deixar um Pelé no banco”. Alguém deve ter soprado que, se é assim, ele será lembrado como o presidente que expulsou Pelé de campo. O palanqueiro itinerante engatou uma terceira e, nesta quinta-feira, fez outra descoberta: “Palocci é o homem que prestou muitos serviços ao governo e não podemos desampará-lo”.
Se a preocupação é real, deve chamar imediatamente o doutor Márcio Thomaz Bastos, ou outro especialista em livrar pecadores de estimação do merecidíssimo castigo. O amparo jurídico impediu que Palocci fosse condenado pela violação da conta de Francenildo Costa na Caixa Econômica Federal. Mas já não há qualquer espécie de amparo político capaz de manter no cargo o ministro enredado no milagre da multiplicação do patrimônio. Palocci perdeu a voz há quase duas semanas por falta do que falar. Diga o que disser, nada mudará a verdade devastadora: ele enriqueceu com o tráfico de influência, usando como fachada a empresa de consultoria Projeto. Bom nome: nunca foi mais que um projeto a firma cujo quadro funcional se limitava à moça do telefone.
Foi Lula quem impôs a Dilma Rousseff a nomeação do novo chefe da Casa Civil envilecida pelas três escolhas anteriores. Deve-se debitar na conta do ex-presidente, portanto, a gangrena que surgiu com José Dirceu, expandiu-se com Dilma Rousseff, tornou-se especialmente malcheirosa com Erenice Guerra e completou-se com Antonio Palocci. Dirceu complicou-se em 2004 com a divulgação do vídeo em que o amigo íntimo Waldomiro Diniz, assessor para Assuntos Parlamentares, pedia propina a um bicheiro. No ano seguinte, o guerrrilheiro de festim estrelou o escândalo do mensalão e acabou substituído por Dilma.
A sucessora de Dirceu montou a fábrica de dossiês cafajestes e se enrascou na suspeitíssima conversa com Lina Vieira. Transferida para a campanha eleitoral, cedeu a vaga a Erenice Guerra, superassessora e melhor amiga, que reduziu a Casa Civil a esconderijo da quadrilha formada por parentes e agregados. Estigmatizado pelo caso do caseiro, Palocci já chegou com culpa no cartório. Conseguiu ampliá-la neste outono, quando o Brasil soube que o primeiro-ministro do novo governo é um reincidente sem remédio.
Waldomiro Diniz pôde redigir em sossego o pedido de exoneração. Oficialmente, saiu porque quis, esperteza repetida por Dirceu no inverno de 2005, quando o escândalo do mensalão desabou sobre a figura que a Procuradoria-Geral da República mais tarde qualificaria de “chefe de uma organização criminosa sofisticada”. Ele saiu como sairia Erenice: com um pedido de demissão que lhe valeu um salvo-conduto para aparecer quando quisesse (além do convite para a festa de posse de Dilma Rousseff).
Cinco meses depois de voltar ao coração do poder, chegou a hora de Palocci descobrir que um raio pode cair até quatro vezes no mesmo lugar. O governo já entendeu que é impossível mantê-lo onde está. A discurseira contra a imprensa, a oposição e funcionários da prefeitura paulistana é só a bisonha reprise do truque forjado para adiar o desfecho inevitável. O Planalto precisa de mais tempo para achar uma “saída honrosa” para o companheiro que desonrou quase todos os cargos que ocupou.
A cabeça e a alma de um governante se traduzem nas escolhas que faz. Para chefiar a Casa Civil, o pajé da tribo que topa qualquer negócio escolheu, sucessivamente, José Dirceu, Dilma Rousseff e Erenice Guerra. Um farsante, uma nulidade e uma quadrilheira. Coerentemente, decidiu que a sucessora deveria escolher Antonio Palocci. Obediente ao chefe, Dilma convidou um estuprador de sigilo. Veio junto um traficante de influência. As quatro obscenidades que o mesmo gabinete hospedou, somadas, compõem o mais revelador retrato de Lula.