Páginas

sábado, 28 de maio de 2011

DILMA ROUSSEFF ENTRE A ‘HERANÇA MALDITA’ DE LULA E SUA PRÓPRIA INÉRCIA

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.

25.05.2011 - 17h43



Começar por onde? Pela timidez da política econômica, que mal e mal tenta impedir a escalada da inflação e nada faz em relação à infra-estrutura? Pela política externa, que começou auspiciosa, tomando distância em relação ao Irã, mas ficou nisso? Pelas sempre urgentes e sempre adiadas reformas que Lula engavetou e Dilma periga de não desengavetar?
Justiça seja feita, o “estilo Dilma” contribuiu notavelmente para desanuviar e relaxar a atmosfera política do país. Falando pouco e denotando certa sobriedade, ela devolveu a milhões de cidadãos a preciosa faculdade do senso crítico. A consciência de que a verborréia lulista ultrapassara de muito os limites do tolerável.  Só por haver despoluído o ar, Dilma já mereceria aplausos.
Mas a melhora não se deveu apenas a seu estilo pessoal. Aqui e ali, mediante discretas indicações, ela de fato sinalizou que iria aos poucos se desvencilhar do torniquete ideológico lulopetista.  Quando anunciou que iria privatizar a expansão dos aeroportos mais congestionados, por exemplo; mas não custa lembrar que esse assunto também está sendo tocado a passos de cágado.
Imaginar que a presidente fosse se inteirar dos detalhes da política educacional em menos de 150 dias seria demais, admito. Minha impressão é que ela tomou conhecimento da falta de rumos do MEC da mesma forma que o público em geral, ou seja, pelos jornais. Foi por este caminho que o país veio a saber que tipo de livro o MEC adquire para distribuir entre centenas de milhares de estudantes.
Foram dois casos. Primeiro, livros destinados ao ensino de história no ensino médio, só que portadores de um flagrante (e previsível) viés ideológico-partidário. Segundo, com repercussão muito maior, o besteirol do “nóis pega os peixe”: um ajuntamento em tudo e por tudo pedestre de pseudo-idéias pedagógicas. Deixo para outro dia um comentário mais paciente e circunstanciado sobre essa matéria.
Mas eis que de repente, não mais que de repente, a Exma. Sra. Presidente da República se deixa arrastar para um imbróglio, este sim, de bom tamanho. Um imbróglio, dois imbróglios, um em dois ou dois em um, vamos ver aos poucos qual é a caracterização mais adequada.
De um lado, o affair Palocci. Não preciso recontar a história toda. Do essencial todo mundo já tomou conhecimento: o ministro-chefe da Casa Civil recebeu uma fortuna entre 2006 e 2010, período em que também exerceu o mandato de deputado federal. Alega tê-la ganho mediante atividades de consultoria, mas não deseja revelar quem foram seus contratantes nem por que o contrataram.   
Optando por não fazer de forma voluntária os esclarecimentos que a opinião pública reclama, o ministro obviamente se torna alvo de uma longa série de indagações e cobranças totalmente pertinentes.  Pode dizer que não deve satisfações a ninguém? É claro que não; isto aqui não é uma monarquia absoluta, é uma república, uma democracia, um Estado de Direito.
Pode dizer que seus ganhos estão dentro do padrão normal no ramo de consultoria econômica? Poder, pode; pode dizer o que quiser; mas precisa se lembrar que nem todos os cidadãos são crédulos incuráveis.
Pode dizer que as informações relevantes já foram prestadas ao fisco? De forma alguma. Sendo um agente público, não lhe cabe delimitar o que é ou não relevante. Já se sabe, por exemplo, que uma grande parte dos rendimentos que auferiu foi-lhe paga nos últimos dois meses do ano passado, após a eleição presidencial, tendo ele coordenado a campanha vitoriosa e intermediado os contatos dela com os provedores de recursos financeiros.
Numa ponta – chamemo-la a “ponta Palocci”-, é portanto evidente que a presidente se meteu numa enrascada. Sua opção, doravante, é manter ou demitir o todo-poderoso ministro da Casa Civil. Ela poderia ter evitado esse dilema? Claro que podia. Bastava ter indicado a Antonio Palocci a conveniência de um afastamento até os fatos ficarem plenamente esclarecidos.
Aqui chegamos à “ponta Congresso”, ou, se quiserem, à ponta Código Florestal, ou ainda à ponta PT-PTMDB.
Não quero fazer uma avaliação injusta. Numa questão que consideram vital, os ruralistas provavelmente fariam valer o seu peso numérico na Câmara, de um jeito ou de outro. Mas precisava ser uma derrota acachapante como a que se verificou ontem, com possíveis reflexos no Senado? Se este mantiver o texto  aprovado na Câmara, Dilma não terá outra opção a  não ser o veto, e a partir daí o relacionamento entre o Executivo e o Legislativo poderá sofrer uma deterioração substancial e duradoura.
No fragor dessas duas batalhas – Palocci e Código Florestal -, Dilma Rousseff  pediu ajuda. Chamou Lula, Franklin Martins e outros menos votados. Oficialmente eles teriam ido a Brasília por outras razões, claro, mas este texto não é destinado a leitores mirins. Na realidade dos fatos, o  processo acima rememorado pode ser resumido em três pontos.
Primeiro, Dilma está começando a sentir em seus ombros o peso da “herança maldita” de Lula: a ilha da fantasia no aspecto econômico, o país travado pelas reformas que ele poderia ter feito e não fez etc etc.
Segundo, o peso de sua própria inércia. É difícil dizer se Dilma não percebe a densa nuvem de dificuldades que está se formando, ou se percebe mas  não tem coragem ou capacidade para agir. Fora de dúvida é que ela continua refém das facções  e dos apetites partidários que despudoradamente se digladiam à sua vista, refém das ambigüidades ideológicas e partidárias que a catapultaram à sua atual posição.
Por último, a presidente parece prestes a ser tragada por um duplo sorvedouro. De um lado, certa propensão a olhar o Congresso de cima para baixo, tratando-o de maneira arrogante e autoritária – atitude em geral desaconselhável mas especialmente grave em vista de sua inexperiência no ramo. De outro, ao constatar a pouca solidez do terreno em que está pisando, o rápido recurso ao mentor, ao paizão: Lula.
Essa fórmula pode funcionar uma, duas ou três vezes, mas acabará por aprofundar o seu desgaste. Inevitavelmente. Como dois e dois são quatro.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.