Páginas

terça-feira, 31 de maio de 2011

Palocci inviabilizado, Dilma enfraquecida e Lula extrapolando: aonde é que isto vai dar?

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para acessá-lo, clique aqui.


28.05.2011 - 16h47



Economista, ex-deputado e ex-ministro, o professor Delfim Netto é também conhecido por seu talento humorístico  e  por  sua mordacidade.  É dele, por exemplo,  a  expressão “estelionato eleitoral”, originalmente uma peça de zombaria a respeito dos resultados eleitorais de 1986.
Em 1986, para quem não se lembra,  a aliança  PMDB+PFL  esmagou nas urnas o PDS (ex-Arena) de Delfim Netto.  A  aliança  era  à época  a base de apoio de José Sarney, que  virou   presidente  devido à  morte de Tancredo Neves em abril daquele  ano.  O “estelionato”  a que Delfim se referia  foi o prolongamento do tabelamento de preços conhecido como Plano Cruzado  até depois  da eleição. Uma vez constatada a avalanche de votos favoráveis ao governo,  Sarney  proporcionou  ao Plano o  conveniente sepultamento e os preços voltaram a subir.
Num momento de franqueza, Delfim provavelmente admitiria que a eleição de 2010  foi um estelionato eleitoral de dimensões ainda maiores. Pela  gastança  do governo e pelo retardamento de medidas contra a inflação, desde logo. Pelo anúncio de obras e realizações que nunca saíram do papel, também. Mas sobre tudo  pela  sistemática ocultação da candidata à presidência.
Até a  undécima hora, Dilma Rousseff foi uma candidata rigorosamente  clandestina. Foi só na undécima hora  que Lula  concedeu aos cidadãos-eleitores o direito de saber alguma coisa a respeito dela.  Durante quase dois anos, a imagem da super-tecnocrata ( a responsável pelos “sucessos” do governo, a “mãe do PAC” etc) foi meticulosamente construída como um puro produto de marketing.  A Dilma de verdade, de carne e osso, essa passou pela cena sem dizer palavra.
Os acontecimentos dos últimos dez dias começaram a evidenciar o pleno significado e as graves implicações do  fato evocado no parágrafo anterior . Durante meses, e por diferentes ângulos, os observadores mais atentos  anteciparam os problemas  a que a clandestinidade de Dilma Rousseff provavelmente daria ensejo.
Primeiro, a questão da governabilidade. Estaria Dilma  Rousseff  de fato à altura do cargo que pleiteava? À parte os seus supostos conhecimentos técnicos, teria ela condições de compensar a sua evidente inexperiência no campo político?  Seria capaz de arbitrar  o jogo   nem sempre leal ou cordial  entre os partidos que a iriam apoiar no Congresso?  Em todos esses aspectos, quem  a afiançava era única e exclusivamente o seu mentor, Lula; mas   Lula, convenhamos,    não poderia ser incluído na metade mais objetiva dos 190 milhões de brasileiros.
Juntando a possível incapacidade de Dilma com a super-popularidade e as mal-disfarçadas ambições políticas  do próprio Lula, não era difícil perceber  que  um  dilema institucional potencialmente  sério  ia se configurando nos  desvãos da campanha. Com sua provável debilidade política, como  poderia Dilma Rousseff  se  desprender  da figura  dominadora de Lula?  Com que recursos – em termos de apoio social, popularidade, elementos simbólicos etc etc – poderia ela contar para  tornar efetivo  e não apenas jurídico o caráter unipessoal da presidência da República?
Porque, sejamos claros, a presidência é unipessoal.  Tornada  constitucional, a dualidade já seria uma complicação sem tamanho; informal, alheia à Constituição, ela  poderia (e pode) se configurar como uma ilegalidade e até como uma crise permanente.
Uma eleição não é uma mera coleta de opiniões. Não é uma simples oportunidade para os cidadãos  manifestarem suas preferências. Se assim fosse, bastariam as pesquisas. Elas resolveriam tudo, com menos incômodo e a um custo infinitamente mais baixo.
Na eleição presidencial, quando tecla o seu voto, o que o cidadão faz é decidir  a quem vai entregar o comando do Estado. Entendamo-nos quanto ao significado desta expressão. Ao candidato de sua escolha, o eleitor entrega um feixe de poderes. Desde logo, o poder de representá-lo,  de falar e agir em nome dele, dentro e fora do país. E obviamente o poder de decisão. O presidente terá que  tomar decisões e o eleitor terá  que acatá-las; poderá até ser forçado fisicamente a acatá-las, quer elas sejam ou não de seu agrado.
Quando digo “o eleitor”, quero dizer  todo o corpo eleitoral. Do ponto de vista constitucional, a distinção entre vitoriosos e derrotados é irrelevante. Os derrotados participaram, legitimaram e acataram o resultado das urnas. Portanto,  em 2010, não foram só os petistas, lulistas, peemedebistas ou o que seja que decidiram entregar os poderes da Presidência a uma pessoa chamada Dilma Rousseff. Fomos todos nós , os 130 milhões de eleitores.
Mas com uma condição importante.  Foi a ela e somente a ela que entregamos o  “office”, a magistratura presidencial. Na prática o poder nem sempre se individualiza a tal ponto, mas permitir que ele se dilua e se dualize equivale a colocar o pacto constitucional em risco.
Desde a nomeação dos ministros,  Dilma Rousseff, vem dando mostras de inaptidão para o exercício unipessoal do poder que a eleição lhe conferiu. Nos últimos 10 ou 15 dias, as  indicações desse tipo ganharam contornos bastante nítidos.
Evitemos. porém, um dramatismo desnecessário e fora de lugar. Ainda nem terminamos o quinto mês do governo Dilma.
O que estou dizendo – nem mais, nem menos – é que os acontecimentos da última semana  trouxeram de volta, e  justificadamente, algumas das apreensões  que  permearam a contenda eleitoral do ano passado.
Mas que fique claro:  cabe à presidente e às instituições formais do Estado resolver  os problemas apontados, na hipótese de eles se manifestarem de maneira persistente ou com maior profundidade.
No vigente regime constitucional brasileiro -  uma república democrática de Direito-,  não há espaço para a  figura  política de um “condestável”, um poder extra-constitucional e paralelo.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus