Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente em seu blog no site de EXAME.com. Para acessá-lo, basta clicar no título acima.
18.05.2011 - 19h16
Bolívar Lamounier
Quem estiver acompanhando a vida pública brasileira com um razoável distanciamento, com certeza terá percebido um curioso fenômeno.
Admito que minha percepção pode ser demasiado subjetiva, mas estou cada vez mais convencido de que estamos vivendo – como direi, um período de decadência? Não, não quero chegar a tanto. Digamos um certo desnorteio, certa falta de bom senso, ou certa tendência a dizer ou fazer as coisas de modo precipitado.
O Brasil político não nasceu ontem. Contando da Constituição de 1824, temos quase dois séculos de janela. Independente de suas afiliações partidárias ou doutrinárias, nossos políticos eram em geral vistos como competentes, alguns foram até tidos como superiormente sagazes.
No entanto, nos últimos 15 dias, pelo menos dois fatos me fizeram pensar que talvez estejamos numa espécie de entressafra: um entorno estéril, ressecado, amarelo-esmaecido, com alguns trechos recobertos por uma fina camada de besteirol.
Os fatos a que me refiro são, primeiro, o debate sobre a localização da futura estação Higienópolis do metrô de São Paulo; poderia também ser o surto de alta filosofia a que o MEC deu ensejo ao endossar certos livros destinados aos níveis fundamental e médio, mas vou ficar com a questão do metrô. Segundo, o calor gerado pela revelação de que o ministro Antonio Palocci teve o seu patrimônio multiplicado por 20 entre 2006 e 2010.
O METRÔ E A BATALHA QUE NÃO HOUVE
A questão do metrô começou com a reação contrária da associação de moradores à localização (rua Sergipe) determinada pelo governo. Entrevistados pelos jornais da capital, alguns moradores (não a associação, pelo que pude averiguar) também contrários manifestaram desconforto ou temor diante do possível aumento no número de drogados, ladrões ou prostitutas circulando no bairro.
Identificado o caráter “preconceituoso” de tais manifestações, a temperatura subiu, como era fácil prever, e entre os primeiros a botar lenha na fogueira estava o indefectível ex-presidente Luís Inácio. Estava, pois, “definida” a situação. Era mais uma vez a “zelite” querendo manter o “povo” convenientemente afastado.
Esta historieta ilustra bem o grau em que o modo ideológico de pensar permeia atualmente a discussão dos assuntos públicos. Por que não entender o “preconceito” dos moradores contrários à estação como uma hipótese sobre o que poderia ocorrer no bairro?
Daqui a dois ou três anos, a hipótese pode se revelar certa ou errada, mas eles têm todo o direito de formulá-la, ou seja, de imaginar futuros alternativos e de dizer qual preferem. O mesmo vale para o lado oposto, é óbvio. Não me consta que a Constituição proíba a expressão de interesses, preferências, temores ou premonições.
E o governo do Estado? Que papel desempenhou ou podia ter desempenhado? Ora, é óbvio que não lhe cabe validar ou invalidar hipóteses sobre algo que está longe de acontecer, tampouco arbitrar temores ou premonições.
Mas há dois pontos objetivos, sobre os quais ele poderia ter agido. Primeiro: é verdadeiro ou falso que a estação na rua Sergipe ficará a uma distância inconvenientemente curta da anterior, a estação Mackenzie? Segundo: uma vez configurada uma discussão entre dois grupos de cidadãos, por que não ouvi-los em audiência pública ou pelo menos numa reunião informal?
Rememorada com a devida calma, a célebre batalha de Higienópolis tem um importante ponto em comum com a de Itararé: o fato de não ter ocorrido. Foi sem nunca ter sido. Mas poderia ter deixado um saldo mais interessante, descartando o ideologismo em proveito de duas qualidades da democracia: a concórdia civil e o senso de realidade.
O AFFAIR PALOCCI
Minha segunda história começa com a revelação pela Folha de S.Paulo dos ganhos auferidos entre 2006 e 2010 por uma empresa de consultoria econômica pertencente em sua quase totalidade ao ministro Palocci.
Existe alguma vedação legal ao exercício dessa atividade por um ex-ministro? É óbvio que não. Haveria algo irregular na empresa? Ou teria talvez o ministro deixado de informar seus rendimentos à Receita? Não me consta, e não tenho razão alguma para imaginar que isso tenha ocorrido.
A questão, no fundo, é de uma extrema simplicidade. Trata-se tão somente do valor inusitadamente alto dos ganhos do ministro Palocci no período. O padrão normal de faturamento das empresas de consultoria é conhecido tanto pela imprensa quanto pelos economistas e demais profissionais do ramo. Se à luz desse conhecimento os referidos ganhos não fossem inusitadamente altos, o jornal por certo não teria interesse em divulgá-los, nem a divulgação teria a repercussão que teve.
Isto posto, como poderia ou deveria o ministro ter reagido? Assim como Antonio Palocci, outros ex-ministros dedicaram-se à consultoria econômica após deixarem o serviço público. Uma providência simples teria sido então uma disclosure voluntária: a bem da transparência, o ministro poderia ter optado por abrir as informações pertinentes à opinião pública.
Não o fazer, como o ministro declarou, para preservar a confidencialidade da empresa ou empresas que contrataram seus serviços, não é um argumento convincente; muito pelo contrário, é um argumento que levanta dúvidas, sabendo-se que algumas das empresas desse ramo de atividade divulgam sua carteira de clientes até em seus sites, como uma questão de currículo e prestígio.
No caso do ministro Palocci, a transparência se impõe por uma razão adicional de extrema importância. Como deputado federal no período mencionado, ele estava sujeito às restrições que a Constituição estabelece no artigo 54 e às penalidades previstas no artigo 55.
A partir da posse, o deputado não pode “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”. Pelo artigo 55, o deputado que infringir a restrição acima (ou qualquer das outras constantes do artigo), poderá ter o mandato cassado.
Portanto, como sugeri, a questão é simples. A obrigação jurídica e moral do ministro é prestar os esclarecimentos necessários, demonstrando que não estava incurso nas restrições do artigo 54. Se não puder demonstrar isso, ele terá então cometido infração grave, punível com a perda do mandato.
Nesta altura do texto eu preciso voltar à minha hipótese inicial, quero dizer, a essa estranha entressafra em que a política brasileira aparentemente se encontra. Mas o Sr. Palocci, o ministro mais poderoso do governo, o ocupante do mais político dos ministérios, em vez de simplificar o problema, o que fez foi complicá-lo, politizando-o, ou permitindo que ele fosse politizado por esse aglomerado disforme conhecido como “base de apoio” do governo no Congresso. Lá, o mínimo que se ouviu foi que o cumprimento das leis aplicáveis ao caso envolveria risco de desestabilização!
O próprio senador Sarney desceu do elevado pedestal representado por sua experiência parlamentar e seu currículo como ex-presidente para declarar que Palocci apenas fez “o que todo faz”; ou seja, para reeditar e abraçar a doutrina Tomás Bastos, aquela inaugurada na época do mensalão.
Por essas e outras é que eu às vezes penso que nós – os 190 milhões de brasileiros – fomos produzidos em série. Somos filhos de uma linha de montagem e de um controle de qualidade rigoroso, programados para sairmos todos rigorosamente iguais.
Deve ser por isso que sempre há alguém martelando essa tecla: “ele fez, mas quem não fez?”. É a única explicação: nós todos fazemos sempre a mesma coisa, do mesmo jeito, e como poderíamos fazer algo diferente, se fomos montados para sermos não juridicamente, mas mecanicamente iguais?
Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.
augurium@augurium.com.br
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.
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