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domingo, 26 de junho de 2011

Desonestidade é cultura

Artigo de João Ubaldo Ribeiro, publicado no Estadão deste domingo. Para ler o original, clique aqui.

26 de junho de 2011 | 0h 00
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo



Sempre se tem cuidado com generalizações, para não atingir os que não se enquadram nelas. Às vezes o sujeito odeia indiscriminadamente toda uma categoria, mas, ao falar nela e, principalmente, ao escrever, abre lugar para as exceções, os "não-são-todos" e ressalvas hipócritas sortidas. Outros recorrem a gracinhas, como na frase do antigamente famoso escritor Pitigrilli, segundo a qual "as únicas mulheres sérias são minha mãe e a mãe do leitor". No caso presente, decidi que as generalizações feitas hoje excluem todos os leitores, a não ser, evidentemente, os que desejem incluir-se - longe de mim contribuir para aumentar nossa tão falada legião de excluídos.
Antigamente, era muito comum ler ensaios e artigos escritos por brasileiros em que nós éramos tratados na terceira pessoa: o brasileiro é assim ou assado, gosta disso e não gosta daquilo. Em relação a maus hábitos então, a terceira pessoa era a única empregada. O autor do artigo escrevia como se ele mesmo não fizesse parte do povo cuja conduta lamentava. Até mesmo nas conversas de botequim, durante as habituais análises da conjuntura nacional, o comum era (ainda é um pouco, acho que o boteco é mais conservador que a academia) o brasileiro ser descrito como uma espécie de ser à parte, um fenômeno do qual éramos apenas espectadores ou vítimas. Eu não. Talvez, há muito tempo, eu tenha escrito dessa forma, mas devo ter logo compreendido sua falsidade e passei a me ver como parte da realidade criticada. Individualmente, posso não fazer muitas coisas que outros fazem, mas não serei arrogante ou pretensioso, vendo os brasileiros como "eles". Não são "eles", somos nós.
Creio que, feita a exceção dos leitores e esclarecido que estou falando em nós e não em inexistentes "eles", posso expor a opinião de que fica cada vez mais difícil não reconhecer, vamos e venhamos, que somos um povo desonesto. Não conheço as estatísticas de países comparáveis ao nosso e, além disso, nossas estatísticas são muito pouco dignas de confiança. Mas não estou preparando uma tese de mestrado sobre o problema e não tenho obrigação metodológica nenhuma, a não ser a de não falsear intencionalmente os fatos a que aludo e que vem das informações e impressões a que praticamente todos nós estamos expostos.
Claro, choverão explicações para a desonestidade que vemos, principalmente nos tempos que atravessamos, em que a impressão que se tem é de que ninguém é mais culpado ou responsável por nada. Há sempre fatores exógenos que determinaram uma ação desonesta ou delituosa. E, de fato, se é assim, não se pode fazer nada quanto à má conduta, a não ser dedicar todo o tempo a combater suas "causas". Essas causas são todas discutíveis e mais ainda o determinismo de quem as invoca, que praticamente exclui a responsabilidade individual. E, causa ou não causa, não se pode deixar de observar como, além de desonestos, ficamos cínicos e apáticos. Contanto que algo não nos atinja diretamente, pior para quem foi atingido.
Ninguém se espanta ou discute, quando se fala que determinado político é ladrão. Já nos acostumamos, faz parte de nossa realidade, não tem jeito. Alguns desses ladrões são até simpáticos e tratados de uma forma que não vemos como cúmplice, mas como, talvez, brasileiramente afetuosa. Votamos nele e perdoamos alegremente seus pecados, pois, afinal, ele rouba, mas tem suas qualidades. E quem não rouba? Por que todo mundo já se acostumou a que, depois de uma carreira política de uns dez anos, todos estão mais gordinhos e com o patrimônio às vezes consideravelmente ampliado? Como é que isso acontece rotineiramente com prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores, ministros e quem mais ocupe cargo público?
Os políticos, já dissemos eu e outros, não são marcianos, não vieram de outra galáxia. São como nós, têm a mesma história comum, vieram, enfim, do mesmo lugar que os outros brasileiros. Por conseguinte, somos nós. Assim como o policial safado que toma dinheiro para não multar - safado ele que toma, safados nós, que damos. Assim como o parlamentar que, ao empossar-se, cobre-se de privilégios nababescos, sem comparação a país algum.
Em todos os órgãos públicos, ao que parece aos olhos já entorpecidos dos que leem ou assistem às notícias, se desencavam, todo dia, escândalos de corrupção, prevaricação, desvio de verbas, estelionato, tráfico de influência, negligência criminosa e o que mais se possa imaginar de trambique ou falcatrua. E em seguida assistimos à ridícula, com perdão da má palavra, microprisão até de "suspeitos" confessos ou flagrados. A esse ritual da microprisão (ou nanoprisão, talvez, considerando a duração de algumas delas) segue-se o ritual de soltura, até mesmo de "suspeitos" confessos ou flagrados. E que fim levam esses inquéritos e processos ninguém sabe, até porque tanto abundam que sufocam a memória e desafiam a enumeração.
Manda a experiência achar que não levam fim nenhum, fica tudo por isso mesmo, porque faz parte do padrão com que nos domesticaram (taí, povo domesticado, gostei, somos também um povo muito bem domesticado) saber que poderoso nenhum vai em cana. E é claro que, por mais que negue isso com lindas manifestações de intenção e garantias de sigilo (como se aqui, de contas bancárias de caseiros a declarações de imposto de renda, algo do interesse de quem pode ficasse mesmo sigiloso), essa ideia de esconder os preços das obras da Copa tem toda a pinta de que é mais uma armação para meter a mão em mais dinheiro, com mais tranquilidade. Ou seja, é para roubar mesmo e não há o que fazer, tanto assim que não fazemos. Acho que é uma questão cultural, nós somos desse jeito mesmo, ladravazes por formação e tradição. 


Em nome da Copa

Artigo de Dora Kramer, no Estadão deste domingo. Para ler o original, clique aqui.

26 de junho de 2011 | 0h 00
Dora Kramer - O Estado de S.Paulo



O que terá acontecido de tão extraordinário entre segunda e quarta-feira da semana passada que fez o presidente do Senado e de seu partido, o PMDB, mudarem de posição em relação ao sigilo imposto aos orçamentos das obras para a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016?
Segunda-feira, José Sarney levantava-se contra o sigilo previsto no Regime Diferenciado de Contratações (RDC): "Temos de encontrar uma maneira de retirar esse artigo, uma vez que dá margem inevitavelmente a se levantar dúvidas sobre o orçamento da Copa. Por que o sigilo?".
Na terça, o líder do governo no Senado, Romero Jucá, avisava que certamente haveria modificações na medida provisória, mas, no mesmo dia, Dilma Rousseff mandava informar que havia "espaço para negociação" e despachava sua ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, para conversar com o partido sobre o passivo de pleitos acumulados.
Na quarta, Sarney calou. Quem falou foi o presidente em exercício do PMDB, Valdir Raupp: "Não existe sigilo", disse, incorporando o argumento que o governo vinha utilizando desde a sexta-feira anterior e que até 48 horas não parecera convencer Sarney: "O texto busca evitar o conluio de empresas no processo de licitação".
Para se acreditar na lisura do poder de convencimento do Palácio do Planalto é preciso, então, aceitar que o presidente do Senado disse o que disse de maneira leviana. Sem ler o texto do dispositivo na medida provisória, sem contar com um único entre seus inúmeros assessores para lhe alertar de que estava sendo precipitado ao qualificar o referido artigo como suspeito.
Ou seja, para responder à pergunta inicial: nada de extraordinário aconteceu entre segunda e quarta-feira da semana passada. A ocorrência foi o que se pode nominar de ordinária. Nos dois sentidos.
Sarney, Jucá e companhia não queriam zelar pela transparência de coisa alguma. Queriam apenas ser ouvidos.
Há quem tenha interpretado a mudança de posição do PMDB como demonstração de que a presidente finalmente está se saindo bem nas artes da política.
Na realidade é a indicação de que prevalece a mesma lógica, apenas com o sinal trocado: se antes Dilma procurava resistir ao assédio do PMDB e companhia, agora resolveu ceder.
O pano de fundo é igual. Toma-se a atividade política pelo mero, mais fácil - mas não suficiente nem necessariamente eficaz - exercício deslavado e rudimentar do fisiologismo.
Ou se resiste ou se cede a ele, mas não se tenta a via da negociação íntegra.
A comparação é de um político do PMDB com larga experiência no ramo: "As obras da Copa estão hoje para a disseminação da barganha, como já esteve a dita governabilidade para a justificativa de todo tipo de malandragem".
Sob o guarda-chuva da "governabilidade" instituiu-se o fisiologismo como regra e perpetram-se malfeitorias a mancheias. Agora começa a se configurar cenário semelhante.
Qualquer coisa se faz, se explica com alusão à premência das obras.
Está acontecendo em vários Estados: contratos entre governos e o BNDES para liberação de recursos em mais de 20% do valor dos projetos de obras e cujas cláusulas não foram cumpridas estão simplesmente sendo alterados por pressão dos governadores para se adaptarem às circunstâncias, afrouxando as exigências.
Em nome da governabilidade, em nome da Copa, em detrimento da integridade no trato do que pertence ao público.
Além do sigilo. A Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) preparou um documento para ser entregue à presidente Dilma Rousseff e aos parlamentares apontando vários senões no RDC.
Embora entre eles esteja o sigilo, na visão da CBIC, enquanto se discute este ponto, outros passam despercebidos. Por exemplo, o sistema de contratação integrada pelo qual se exige 30 dias para apresentação de propostas, quando o mínimo para a elaboração desde o projeto básico ao orçamento detalhado seria de 150 dias.
Qual o problema? A indicação de que seriam favorecidas as empresas com projetos previamente prontos, as únicas em condições de apresentar as propostas no prazo estipulado. 


sábado, 25 de junho de 2011

O visto de Battisti é ilegal

Editorial do Estadão deste sábado. Para ler o original, clique aqui.

25 de junho de 2011 | 0h 00



- O Estado de S.Paulo
Por 14 votos a 2, 1 abstenção e 3 ausências, o Conselho Nacional de Imigração - vinculado ao Ministério do Trabalho e integrado por 9 representantes de Ministérios, 5 de sindicatos, 5 de entidades patronais e 1 da comunidade científica - concedeu visto de permanência ao ex-terrorista italiano Cesare Battisti. Com isso, ele poderá viver e trabalhar por tempo indeterminado no Brasil.
Pela ordem jurídica vigente, a decisão do Conselho Nacional de Imigração é ilegal. Ela colide com a Lei 6.815/81, que criou o órgão e define a situação jurídica dos estrangeiros no Brasil. O inciso IV do artigo 7.º dessa lei proíbe taxativamente a concessão de visto "ao estrangeiro que foi condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira".
É justamente esse o caso de Battisti. Ele foi condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana por quatro assassinatos cometidos na década de 1970, quando integrava a organização terrorista Proletários Armados para o Comunismo. No momento em que Battisti foi processado, julgado e condenado, a Itália vivia em plena normalidade política e constitucional, ou seja, sob democracia plena.
Battisti também já foi condenado no Brasil pela primeira instância da Justiça Federal à pena de dois anos em regime aberto, convertida em pagamento de multa e prestação de serviços à comunidade, por usar passaportes franceses falsificados, encontrados quando foi preso pela Polícia Federal, em 2007, a pedido do governo italiano. Ele recorreu, mas a decisão foi mantida há cinco meses pelo Tribunal Regional Federal da 2.ª Região. No inciso II do artigo 7.º, a Lei 6.815 também proíbe a concessão de visto "ao estrangeiro considerado nocivo à ordem pública".
Por mais que se apresente como perseguido político, Battisti, do estrito ponto de vista técnico-jurídico, não preenche os critérios previstos pela legislação para a obtenção de visto de residência. Por isso, a Procuradoria-Geral da República - o órgão encarregado pela Constituição de "defender a ordem jurídica" - não tem outra saída a não ser contestar judicialmente a decisão do Conselho Nacional de Imigração e exigir o cumprimento do direito positivo.
Foi com base nessa legislação que, em 2009, a Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer contrário à concessão de asilo a Battisti - posição que foi endossada pelo Comitê Nacional para os Refugiados, uma comissão interministerial encarregada de receber os pedidos de refúgio e determinar se os solicitantes reúnem as condições jurídicas necessárias para serem reconhecidos como refugiados. Surpreendentemente, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, desprezou as duas decisões e concedeu o status de refugiado político a Battisti.
Classificando a iniciativa de Genro como "grave e ofensiva", o Ministério de Assuntos Estrangeiros da Itália recorreu ao Supremo Tribunal Federal, acusando o governo brasileiro de não cumprir o tratado de extradição firmado pelos dois países em 1989. Mas, em vez de dar uma solução clara e objetiva ao caso, em 2010 a Corte, numa decisão ambígua, autorizou a extradição, mas deixando a última palavra ao presidente da República. Pressionado pelo ministro da Justiça, por um lado, e pelo governo da Itália, por outro lado, Lula deixou claro que concederia asilo a Battisti - o que só fez no último dia de seu mandato - e pediu à Advocacia-Geral da União um parecer que fundamentasse sua decisão. Cumprindo a determinação, o órgão desprezou a legislação e preparou um parecer político, dando as justificativas "técnicas" de que o presidente precisava para decidir pela permanência de Battisti no País, com o status de imigrante.
O governo italiano voltou a recorrer e o Supremo, para perplexidade dos meios jurídicos, também agiu politicamente, ignorando tanto o tratado de extradição firmado entre o Brasil e a Itália quanto a própria legislação brasileira sobre estrangeiros. Essa desmoralização das instituições jurídicas foi aprofundada ainda mais com a concessão do visto de permanência a Battisti, pelo Conselho Nacional de Imigração. 

Direitos humanos e privatizações: pedras no sapato da intelectualidade petista?

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.

24.06.2011 - 19h10



Como observador da vida cultural e política brasileira, tenho reparado num fato curioso: os intelectuais petistas não parecem sujeitos a  certas restrições  tradicionalmente  tidas como aplicáveis  a todos os intelectuais, indistintamente.
O argumento que pretendo desenvolver é um pouco trabalhoso: admito-o  sem contestação.  Farei, pois, o possível  para não  colocar o carro adiante dos bois.
Comecemos pelo básico: o que é, afinal, um intelectual?  Que condições ou requisitos o definem?  Minha conceituação  compõe-se de quatro  elementos. Comento-os a seguir, passo a passo.
Primeiro, como é óbvio, um nível elevado de  conhecimento . Um intelectual digno deste nome tem uma formação muito superior à média da sociedade. E mais, ele não se contenta em possuir um dado estoque de conhecimentos;  empenha-se continuamente  em aumentá-lo, reordená-lo e aprimorá-lo.
Por este critério inicial, não creio que alguém conteste o status “intelectual” dos intelectuais petistas. Não  vou listar nomes, nem preciso.  Os geralmente  citados   são  acadêmicos de escol, vários deles professores titulares nas melhores universidades do país. Outros são profissionais liberais. Entre eles há também clérigos notáveis por sua cultura, jornalistas renomados, e  artistas da melhor estirpe:  músicos, artistas plásticos, escritores…
Outro critério relevante é a presença pública. Por intelectual geralmente se entende alguém que participa intensamente das discussões da sociedade;  alguém que cinzela e amplifica a linguagem, as imagens e os símbolos de que as pessoas “comuns” se valem para compreender a sociedade e a si mesmas.  O intelectual  é portanto alguém que  ajuda a sociedade a  se compreender, proporcionando-lhe  os espelhos (históricos, factuais, morais) de que ela necessita.
Também aqui, ninguém contestará as credenciais intelectuais dos intelectuais petistas. Dúzias deles  se dedicaram desde o início, e de corpo e alma, ao projeto do Partido dos Trabalhadores. Ajudaram a construir a  imagem de uma sigla aguerrida, identificada com os pobres e comprometida com a ética.
Eis aí duas condições: o conhecimento e a presença pública. São condições necessárias, mas a meu ver não suficientes para caracterizamos a figura do intelectual.
Passo, pois, ao meu  terceiro critério: a encarnação de certos ideais de humanidade. Desde o século 18, a figura do intelectual tem a ver com uma missão, se assim o posso dizer: a de encarnar  ideais expansivos (e não restritivos)  da experiência humana. Esta idéia remonta  ao Iluminismo e à Revolução Francesa. Desde então, em todo o Ocidente, o  termo intelectual designa o indivíduo culto que encarna publicamente  os ideais de fraternidade, igualdade e liberdade. Ao representar esse papel, esse indivíduo passou a ser  identificado como “progressista”, ou de “esquerda”. De “direita”, “regressistas” ou “reacionários” (adjetivos quase sempre pejorativos) seriam os descendentes de Edmund Burke, Chateaubriand, De Maistre e  outros que se opuseram (reagiram) à Revolução Francesa e por isso se tornaram conhecidos como  defensores de  uma sociedade restritiva e não expansiva.
“Seriam” os descendentes de Burke… Uso o condicional para ressalvar que essa descrição clássica do intelectual pende para a esquerda e para a revolução, como se nenhum valor houvesse na defesa de outros valores, ou na recomendação de cautela quanto à possibilidade de realizar tais valores em certas circunstâncias ou por certos meios. Desqualificar um Burke como intelectual seria evidentemente um dogmatismo e um ideologismo inaceitáveis. Não tenho como elucidar uma questão desta complexidade no espaço de um post, mas confio em que o contexto de minhas observações a esclareça suficientemente.
Pensando no mundo atual, parece-me fora de dúvida que a defesa dos direitos humanos, onde quer que eles estejam sendo violados ou ameaçados, é  uma parte fundamental desse ideário histórico de progresso e expansão da experiência  humana.  E aqui surge minha primeira dúvida. Por este critério, o status intelectual  da intelectualidade petista, ou de boa parte dela, talvez deva ser reavaliado.
Antecipo-me, porém a uma possível objeção.
A  reavaliação que a meu juízo pode e deve ser feita não se refere prioritariamente  ao que aconteceu no Brasil durante os governos militares. À parte os que se engajaram na luta armada – dado que sobre ela ainda há pontos obscuros-, os petistas integraram a frente de oposições ao regime autoritário:  quanto a isto não há dúvida. Muitos deles participaram ativamente não só das  lutas políticas e eleitorais, mas também dos protestos e  ações que foi necessário empreender  contra os excessos da repressão, responsáveis por torturas e por algo entre 500 e 600 mortos e desaparecidos.
O que me permito pôr em dúvida  é se os intelectuais petistas  têm se preocupado em  denunciar  violações de direitos humanos sabidamente endêmicas em outros países.  Admitamos, para não complicar  o argumento, que os governos do Irã e da China dificilmente  se comoveriam  com protestos de letrados brasileiros.
Mas como se explica o silêncio da intelectualidade  petista em relação a Cuba? Por que  ela endossa, no mínimo por omissão, o tratamento sabidamente brutal que o governo cubano sempre  outorgou  a seus  prisioneiros políticos?
Observe-se que vários dos intelectuais  que  optaram pelo silêncio na questão dos direitos humanos não  se cansavam (ou não se cansam) de aplaudir os  feitos “revolucionários” da ilha socialista. Ora, se seu aplauso era potencialmente  eficaz como ação política,  é de se presumir  que  também o fosse (ou seja) a sua eventual condenação às  atrocidades cometidas pelo Estado cubano.
Cada um comporá  como quiser a sua lista pessoal de atrocidades . Uma possibilidade é voltar aos primeiros dias da  revolução vitoriosa  e incluir os  cinco ou seis mil  fuzilamentos. Outra, menos abrangente, é fazer a conta a partir dos escritores, poetas e jornalistas condenados a mais de dez, em alguns casos até a vinte  anos de prisão. Ou, se preferem, considerar só os casos de presos políticos que se tornaram mundialmente conhecidos no início do ano passado, como o infeliz Zapata, morto depois de 85 dias em greve de fome.
Em quarto e último lugar, eu penso que a figura do intelectual também se caracteriza pela coerência – ou seja, por um pensamento razoavelmente  encadeado ao longo de sua vida.
Entendamo-nos quanto a este ponto. É óbvio que ninguém está “proibido” de mudar. Todo intelectual que se preza trata de enriquecer continuamente os seus conhecimentos, percepções e avaliações.  Se assim não fosse, não haveria evolução, pois evoluir implica acrescentar algo ao que já se possui. O que se presume é que  um intelectual  de verdade é capaz e estará sempre disposto a dar as razões de uma eventual mudança, restabelecendo dessa forma  a continuidade ou coerência de seus conhecimentos e de suas avaliações morais.
É certo que este texto não trata de pesquisadores adstritos a seus laboratórios ou de  eruditos aconchegados em suas torres de marfim. Trata de intelectuais  ativos na  vida pública, e mesmo na  política partidária.
Sendo a vida política o que ela é, a acusação de (in)coerência  pode ser uma  arma assaz virulenta. Anos atrás,  quando da nomeação de Fernando Henrique Cardoso para o ministério da Fazenda, alguém lhe atribuiu  a  frase “Esqueçam o que eu escrevi”. Popularizada, essa suposta confissão de incoerência  foi  empregada contra ele durante anos a fio.
A intelectualidade petista naturalmente não se fez de rogada. Que melhor “prova” poderia haver  da conversão de FHC ao “neoliberalismo”?  Afeiçoado como sempre foi ao debate de idéias,  Fernando Henrique retornou inúmeras vezes a esse episódio e até publicou  um pequeno livro intitulado “Relembrando o que escrevi – da reconquista da democracia aos desafios globais” (Editora Civilização Brasileira).
O  que me levou a  lembrar o uso político daquela suposta confissão de incoerência foram duas matérias sobre privatização divulgadas hoje pelo jornal O Estado de S. Paulo:  uma sobre a privatização da operação de aeroportos e a outra sobre planos para a privatização de portos.
Na primeira matéria, da autoria do jornalista Gláuber Gonçalves, o jornal informa que a entrada de capital estrangeiro no setor aeroportuário é inevitável, e acrescenta:  “grandes construtoras brasileiras travam uma corrida para fechar parcerias com operadoras internacionais, de olho na privatização dos aeroportos de Guarulhos, Campinas e Brasília”.
O professor Marco Aurélio Cabral, da Universidade Federal Fluminense, esclarece a razão de tal corrida: a falta de experiência das empreiteiras [brasileiras] em operações aeroportuárias. “Nossas construtoras têm excelente engenharia de grandes obras e levam muita competitividade para um projeto, [mas] não são especialistas em operação aeroportuária”.
A segunda matéria diz respeito ao setor portuário. Segundo as jornalistas Renata Veríssimo e Célia Froufe , o governo agora prepara as diretrizes para transferir ao setor privado a construção de novos portos marítimos no Brasil”. A Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) já teria identificado 45  áreas consideradas prioritárias para o recebimento de investimentos privados.
A novidade – as autoras prosseguem-  é passar a conceder portos organizados para a iniciativa privada. Manaus será o primeiro”. Nos portos denominados “organizados” ou “públicos”,  a filosofia até agora era admitir a participação privada na construção, mas não na operação do porto. Portanto, o que agora se tem em vista, segundo a matéria, é uma privatização de verdade, com capital privado tanto na construção como no gerenciamento interno de tais portos.
Outro dado interessante é que essa nova política vem sendo discutida desde 2009: “a demora da Secretaria de Portos na definição do Plano Diretor, que permitirá dar início ao processo, está sendo criticada pelo setor privado e investidores e já começa a incomodar o Palácio do Planalto. Está sendo cogitada a possibilidade de a presidente Dilma Rousseff estabelecer as diretrizes por decreto”.
Não vou me estender sobre o fato de as discussões sobre o novo modelo para os portos  terem começado em 2009 , mais uma evidência do caráter farsesco da gritaria contra a privatização na recente campanha eleitoral.
Que têm os intelectuais petistas a ver com portos e aeroportos? Realmente, aqui  há um elo perdido, e com ele tratarei de concluir este longuíssimo texto.
É óbvio que nada tenho contra a presidente Dilma reconhecer a necessidade de capital estrangeiro nos aeroportos e da privatização de portos. Crítica, se eu fosse fazer alguma, seria quanto à protelação de tais decisões – seja por motivos ideológicos ou eleitorais -, durante os 8 anos do Sr. Luís Inácio, com gravíssimo prejuízo para o país.
Quanto aos intelectuais, a questão é o mínimo de coerência que a sociedade tem o direito de esperar deles. Em regimes totalitários, os intelectuais a serviço do partido único mentem sobre tudo e desmentem qualquer coisa sem o menor pudor; mas faz sentido designar gente desse tipo como intelectuais?
No Brasil de hoje existe, bem ou mal, uma democracia; diria até uma democracia vibrante, em certos momentos Num regime de liberdade, existe uma verdadeira esfera pública na qual o sentido das palavras precisa ser assegurado; em tal situação, a compostura do verdadeiro intelectual não lhe permite fazer vistas grossas ao emprego leviano ou mentiroso de determinadas expressões.
No vernáculo petista, até poucos meses atrás, privatização era sinônimo de “privataria” + “neoliberalismo”, termos que por sua vez sugeriam uma mescla de burrice com roubalheira e traição à pátria.
Essa teria sido a marca registrada do governo Fernando Henrique, a julgar pelo discurso dos políticos e militantes petistas, ao qual não faltava o endosso, por ação ou omissão, dos intelectuais ligados à sigla.
Ora, se na década passada privatizar significava “privataria”  e “neoliberalismo”, os dois substantivos aplicam-se da mesma forma ao governo atual.  Se não se aplicam, tampouco valem para o governo Fernando Henrique.
Neste ano da graça de 2011, em nome da coerência e da honestidade intelectuais, seria de bom alvitre nos entendermos quanto a este ponto.
Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.

Cara de PT, alma de PMDB

Artigo de Sandro Vaia, publicado originalmente no Blog do Noblat. Para acessá-lo, clique aqui.


Cargos ou encargos?
Esse é o grande – e falso - dilema que define a verdadeira participação do PMDB no governo Dilma Roussef.
Para o senso comum, é evidente que o PMDB é um partido que desde os idos de 1980, quando deixou de ser MDB e terminou a sua tarefa civilizatória na transição da ditadura militar para a democracia, trocou o pouco que tinha de ideologia por uma consistente e voraz fisiologia.
O presidencialismo de coalizão que caracteriza a democracia brasileira desde o fim da ditadura tem uma característica irremovível: ganhe quem ganhar, só consegue governabilidade a partir da adesão de uma espécie de “centrão” desprovido de princípios ideológicos ou programáticos, mas cheio de apetite fisiológico.
Foi assim nos dois governos FHC, foi assim nos dois governos Lula e agora mais do que nunca está sendo assim no governo Dilma.
A enorme maioria da chamada base aliada no Parlamento, que em tese daria ao governo uma folgada margem de manobra para impor sua vontade, na verdade depende mais do que nunca da boa vontade, dos caprichos e dos apetites da bancada do PMDB, cada vez mais um partido de profissionais.
Sem a liderança macunaímica de Lula, que impunha sua vontade à federação de tendências e subtendências que forma a bancada do PT, cada uma delas se sente liberada para tentar fazer prevalecer seus pontos de vista.
A verdade é que o PT sob o difuso comando de Dilma é bem diferente do PT obediente e submisso à mão de ferro da vontade do líder.
Lula sempre foi maior do que seu partido e sem ele por perto, por mais que ele se esforce para manter a sua influência autoritariamente agregadora, o PT tende a dissolver a sua disciplina férrea em desgastantes embates internos.
Lula continua sendo Lula, mas por mais que tenha liderança moral e ascendência sobre o partido, não tem mais a caneta. E sem caneta, nem Lula é o mesmo Lula.
A crise da queda de Palocci foi bem uma amostra disso: apesar dos apelos do chefe moral, em nenhum momento o partido se uniu para dar sustentação a um dos seus.
O PT não foi capaz sequer de socorrê-lo com uma nota de apoio de suas bancadas no Congresso e deixou que a voragem da crise o engolisse.
Tudo isso faz com que o PMDB se fortaleça cada vez mais como a verdadeira base de sustentação do governo.
Numa entrevista ao Estadão esta semana, o líder do partido na Câmara, Henrique Eduardo Alves, não poderia ter sido mais claro. Ele disse que seu partido, tanto quanto a presidente Dilma, disputou e ganhou as eleições, e por isso deve participar da gestão do governo.
“Mais do que cargos,o PMDB quer encargos”, disse o líder. Apesar da retórica do jogo de palavras (é claro que o PDMB quer tanto os cargos quanto quer os encargos, porque os encargos trazem como conseqüência os cargos), o governo de Dilma Roussef caminha cada vez mais para ser um governo com aparência petista mas com a alma peemedebista.

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Festa macabra

Artigo de Demétrio Magnoli e Adriano Lucchesi, publicado no Estadão desta quinta-feira. Para ler a publicação original, clique aqui.

23 de junho de 2011 | 0h 00
Demétrio Magnoli e Adriano Lucchesi - O Estado de S.Paulo



"Há uma percepção crescente de que a aritmética da Copa do Mundo é um tanto instável", escreveu o Times de Johannesburgo um mês depois do triunfo da Espanha nos campos sul-africanos. "Temos estádios em excesso para nosso próprio uso. Talvez devêssemos exportar estádios para o Brasil, que fará sua Copa do Mundo?". A constatação estava certa; a sugestão, errada. O Brasil, país do futebol, terá o mesmo problema que a África do Sul, país do rúgbi. Aqui, como lá, a festa macabra da Fifa é um sorvedouro implacável de recursos públicos.
Mafiosos usam a linguagem da máfia. Confrontado com evidências de corrupção na organização que dirige, Sepp Blatter avisou que tais "dificuldades" seriam solucionadas "dentro de nossa família". As rendas de radiodifusão e marketing da Fifa ultrapassaram os US$ 4 bilhões no ciclo quadrienal encerrado com a Copa da África do Sul. O navio pirata já se moveu para o Brasil, onde a Fifa articula com seus sócios a rapina seguinte.
O brasileiro João Havelange planejou a globalização do futebol, expandindo a Copa para 24 seleções, em 1982, e 32, em 1998. Blatter concluiu a transformação, rompendo a regra de rodízio de sedes entre Europa e América. Como constatou a Sports Industry Magazine, sob um processo milionário de licitação do direito de hospedagem, as ofertas nacionais assumiram "a forma de promessas de mais e mais pródigos novos estádios para os jogos e novos hotéis luxuosos para uso dos dirigentes da Fifa e de fãs endinheirados". A Copa é um roubo: as despesas são pagas com dinheiro público, de modo que a licitação "constitui, de fato, um esquema de extração de renda concebido para separar os contribuintes de seus tributos".
O saque decorre da conivência de governos em busca de prestígio e de negociantes em busca de oportunidades. Na Europa a rapinagem é circunscrita por uma cultura política menos permeável à corrupção e pela existência prévia de modernas infraestruturas hoteleiras, esportivas e de transportes. Por isso a Fifa seleciona seus próximos alvos segundo critérios oportunistas de vulnerabilidade. Encaixam-se no perfil África do Sul e Brasil, países emergentes que ambicionam desfilar no círculo central do mundo, assim como a semiautoritária Rússia, sede de 2018, e a monarquia absoluta do Qatar, que bateu a Grã-Bretanha na disputa por 2022.
Antes das Copas, consultores associados às redes mafiosas produzem radiosas profecias sobre os efeitos econômicos do evento. Depois, quando emergem os resultados efetivos, eles já estão entregues à fabricação de ilusões no porto seguinte. A África do Sul gastou US$ 4,9 bilhões em estádios e infraestruturas, que gerariam rendas imediatas de US$ 930 milhões derivadas do afluxo de 450 mil turistas, mas só arrecadou US$ 527 milhões dos 309 mil turistas que de fato entraram no país.
O verdadeiro legado positivo da Copa de 2010 foi a mudança de paradigma no sistema de transporte público urbano, pela introdução de ônibus, em corredores dedicados, e do Gautrain, trem rápido de conexão com o aeroporto de Johannesburgo. Os ônibus enfrentavam selvagem resistência dos sindicatos de operadores de peruas, superada pelo imperativo urgente do evento esportivo. O Gautrain serve exclusivamente à classe média, com meios para adquirir bilhetes cujos preços excluem a população pobre. Mas o argumento de que sem uma Copa, não se realizariam obras necessárias de mobilidade urbana equivale a uma confissão de incompetência da elite dirigente.
Eventos esportivos globais tendem a gerar ruínas urbanas, mesmo em países mais inclinados a zelar pelo interesse público. Japoneses e sul-coreanos ainda subsidiam a manutenção das arenas da Copa de 2002. As dívidas contraídas para as obras da Olimpíada de Atenas e da Eurocopa de 2004 aceleraram a marcha rumo à falência da Grécia e de Portugal. A África do Sul incinerou US$ 2 bilhões na construção e reforma das dez arenas da Copa. Todas, com exceção do Soccer City, de Johannesburgo, usado para jogos de rúgbi e shows, figuram hoje como monumentos inúteis, conservados pela injeção de dinheiro público. A Cidade do Cabo paga US$ 4,5 milhões ao ano pela manutenção da arena de Green Point, erguida ao custo fabuloso de US$ 650 milhões e usada apenas 12 vezes depois da Copa. Lá se desenrola um melancólico debate sobre a alternativa de demolição do icônico estádio, emoldurado pela magnífica Table Mountain.
O Brasil decidiu ultrapassar a África do Sul. Aqui, serão 12 arenas, a um custo convenientemente incerto, mas bastante superior aos dispêndios sul-africanos. As futuras ruínas já drenam vultosos recursos públicos, mal escondidos sob as rubricas de empréstimos do BNDES e subsídios estaduais e municipais. O governo paulista prometeu não queimar o dinheiro do povo na festa macabra da Fifa, mas o alcaide Gilberto Kassab assinou um cheque público de US$ 265 milhões destinado ao estádio do Corinthians. São 16 centros educacionais, para 80 mil estudantes, sacrificados por antecipação no altar de oferendas às máfias da Copa. O gesto de desprezo pelas necessidades verdadeiras dos contribuintes reproduz iniciativas semelhantes adotadas, Brasil afora, por governos estaduais e municipais.
Segundo a lógica perversa do neopatriotismo, a Copa é um artigo de valor só mensurável sob o prisma da restauração do "orgulho nacional". De fato, porém, a condição prévia para a Copa é a cessão temporária da soberania nacional à Fifa, que assume funções de governo interventor por meio do seu Comitê Local. O poder substituto, nomeado por Blatter, já obteve o compromisso federal de virtual abolição da Lei de Licitações e pressiona as autoridades locais pela revisão das regras de concorrência pública. Malemolentes, ao som dos acordes de um verde-amarelismo reminiscente da ditadura militar, cedemos os bens comuns à avidez dos piratas.
SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP (DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR);
ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E MESTRE EM TURISMO SUSTENTÁVEL 

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Herança maldita é a institucionalização da impunidade dos bandidos de estimação.

Artigo de Augusto Nunes, publicado originalmente na página do autor em VEJA.com. Para acessá-lo, clique aqui.


22/06/2011
 às 18:51



Se conseguisse envergonhar-se com alguma coisa, o ex-presidente Lula estaria pedindo perdão aos brasileiros em geral, por ter imposto a Dilma Rousseff a nomeação de Antonio Palocci, e aos paulistas em particular, por ter imposto ao PT a candidatura de Aloízio Mercadante ao governo estadual. Se não achasse que ética é coisa de otário, trataria de concentrar-se nas palestras encomendadas por empreiteiros amigos para livrar-se de explicar o inexplicável, como o milagre da multiplicação do patrimônio de Palocci e a comprovação do envolvimento de Mercadante nas bandalheiras dos aloprados. Se não fosse portador da síndrome de Deus, saberia que ninguém tem poderes para revogar os fatos e decretar a inexistência do escândalo do mensalão.
Como Lula é o que é, aproveitou a reunião do PT paulista, neste 17 de junho, para tratar de todos esses temas no mesmo palavrório. Com o desembaraço dos condenados à impunidade perpétua e o cinismo de quem não tem compromisso com a verdade, o sumo-sacerdote da seita serviu a salada mista no Sermão aos Companheiros Pecadores, clímax da missa negra em Sumaré. Sem união, ensinou o mestre a seus discípulos, nenhum bando sobrevive sem perdas. Palocci, nessa linha de raciocínio, perdeu o empregão na Casa Civil não pelo que fez, mas pelo que o rebanho governista deixou de fazer. Foi despejado não por excesso de culpa, mas por falta de braços solidários.
Para demonstrar a tese, evocou o escândalo do mensalão, sem mencionar a expressão proibida. “Eu sei, o Zé Dirceu sabe, o João Paulo sabe, o Ricardo Berzoini sabe, que um dos nossos problemas em 2005 era a desconfiança entre nós, dentro da nossa bancada”, disse o mestre a seus discípulos. “A crise de 2005 começou com uma acusação no Correio, de R$ 3 mil, o cara envolvido era do PTB, quem presidia o Correio era o PMDB e eles transformaram a CPI dos Correios, para apurar isso, numa CPI contra o PT, contra o Zé Dirceu e contra outros companheiros. Por quê? Porque a gente tava desunido”.
A sinopse esperta exige o preenchimento dos muitos buracos com informações essenciais. Foi Lula quem entregou o controle dos Correios ao condomínio formado pelo PMDB e pelo PTB. O funcionário filmado embolsando propinas era apadrinhado pelo deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, que merecera do amigo Lula “um cheque em branco”. O desconfiado da história foi Jefferson, que resolveu afundar atirando ao descobrir que o Planalto não o livraria do naufrágio. Ao contar o que sabia, desmatou a trilha que levaria ao pântano do mensalão. Ali chapinhava José Dirceu, chefe do que o procurador-geral da República qualificou de “organização criminosa sofisticada” formada por dezenas de meliantes.
Tais erros não podem repetir-se, advertiu o pregador. É preciso preservar a coesão do PT e da base alugada, contemplando com cuidados especiais os parceiros do PMDB. Para abafar focos de descontentamento, a receita é singela: “A gente se reúne, tranca a porta e se atraca lá dentro”, prescreveu. Encerrada a briga de foice, unifica-se o discurso em favor dos delinquentes em perigo.
“Eu tô de saco cheio de ver companheiro acusado, humilhado, e depois não se provar nada”, caprichou na indignação de araque o padroeiro dos gatunos federais. Aos olhos dos brasileiros honestos, figuras como o mensaleiro José Dirceu, a quadrilheira Erenice Guerra ou o estuprador de sigilo bancário Antonio Palocci têm de prestar contas à Justiça. Para Lula, todos só prestaram relevantes serviços à pátria. A lealdade ao chefe purifica.
“Os adversários não brincam em serviço”, fantasiou. “Toda vez que o PT se fortalece, eles saem achincalhando o partido”. É por isso que Mercadante está na berlinda: segundo Lula, os inimigos miram não no comandante de milícias alopradas, mas no futuro prefeito da capital. “Nunca antes na história deste país tivemos condições tão favoráveis para ganhar as eleições no Estado”, festejou no fim do sermão.
Se há pouco mais de seis meses o PT foi novamente surrado nas urnas paulistas, o que ampara o otimismo do palanque ambulante? Nada. É só mais um blefe. O PSDB costuma embarcar em todos. Não conseguiu sequer deixar claro que o Brasil Maravilha esculpido em milhares de falatórios só existe na imaginação dos arquitetos malandros e na papelada registrada em cartório.
Cumpre à oposição mostrar que o homem que brinca de xerife é o vilão do faroeste de quinta categoria. Os brasileiros precisam aprender que o câncer que corrói o organismo político nacional não é a corrupção simplesmente ─ essa existe em qualquer paragem. É a certeza de que não haverá sanções legais. Ao longo de oito anos, enquanto cuidava de promover a ignorância à categoria das virtudes, Lula institucionalizou a impunidade dos corruptos e acelerou a decomposição moral do país.
O Brasil deste começo de século lembra um grande clube dos cafajestes sustentado por milhões de eleitores para os quais a vida consiste em não morrer de fome. Essa sim é a herança maldita.

Visão autoritária

Artigo de Merval Pereira, publicado originalmente no jornal O Globo, e reproduzido aqui a partir da publicação no site do Insituto Millenium. Para acessar esta publicação, clique aqui.

22 de junho de 2011
Autor: Merval Pereira





Merval Pereira
Não terá sido por acaso que no espaço de poucos dias o governo federal decidiu por medidas restritivas, em dois casos de repercussão nacional, com o objetivo de impedir, por razões diversas, que a sociedade se inteire de informações que estão sob o controle do Executivo.
O cerne da questão é sua tendência controladora e autoritária, uma continuidade do estilo implantado pelo antecessor e tutor político, que sempre se incomodou com os órgãos de controle externo, seja o Tribunald e Contas da União ou o Tribunal Superior Eleitoral nas campanhas políticas.
A manutenção do chamado “sigilo eterno” para alguns documentos oficiais é uma afronta, sobretudo, à sociedade, submetida a conviver com uma “História oficial” que muito pouco tem de verdadeira.
A mudança de opinião da presidente Dilma Rousseff, que antes mesmo de assumir a Presidência da República já defendia, na Casa Civil, a adoção de uma legislação avançada de acesso a documentos públicos, em nome da liberdade de expressão e da cidadania, tem a mesma justificativa utilizada para esconder documentos referentes ao regime militar: podem abrir feridas, causar mais danos do que benefícios.
Como se mentir sobre fatos históricos, ou escondêlos, fosse melhor para o cidadão brasileiro e para a História do país do que conhecer seu passado, em muitos casos para evitar que certos fatos se repitam.
Já a questão do Regime Diferenciado de Contratações (RDC), com que o governo pretende recuperar o tempo perdido na execução das obras para a Copa do Mundo de 2014, tem mais a ver com a incompetência administrativado que com outra coisa, embora a consequência possa ser mais escândalos de corrupção.
Pode ser coincidência, mas, desde que o país foi anunciado como o organizador da Copa do Mundo, comentava-se que as obras ficariam atrasadas até que, por questões de emergência, os controles fiscalizadores fossem afrouxados, permitindo um lucro maior aos envolvidos nas obras.
Por isso mesmo, foi ridicularizada desde o início a afirmação do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, de que não haveria dinheiro público nas obras da Copa, ficando tudo a cargo da iniciativa privada.
É verdade que há vários tribunais de contas pelos estados e municípios que endurecem muito no processo licitatório, em vez de acompanhar a execução do projeto depois.
O RDC tem o claro objetivo de mitigar o controle, especialmente na fase licitatória, e vai exigir que os tribunais se desdobrem no acompanhamento da execução.
Ontem mesmo o ministro do Supremo Gilmar Mendes, falando em tese, defendeu a modernização da Lei 8.666, das licitações, para que torne mais ágeis os mecanismos de fiscalização. Mas é também fato que para fiscalizar as obras é preciso ter regras fixas, porque há toda uma estrutura montada para esse trabalho, programas de computador, pessoas treinadas.
O primeiro grande inconveniente é exatamente mudar as regras da fiscalização em cima da hora, com as obras todas atrasadas. Na prática, a mudança, se não impede, pelo menos dificulta muito a fiscalização.
Mesmo que fosse para mudar a legislação para melhor, dizem especialistas, teria que haver certo tempo para adaptar a estrutura de fiscalização às novas regras.
A nova legislação também ampliou muito o alcance das novas regras, permitindo que qualquer obra possa ser enquadrada nela, dependendo da vontade do Executivo.
Em vez de se restringir o novo sistema a poucas obras, um hospital, uma estrada, um aeroporto, qualquer obra pode ser considerada importante para a realização da Copa do Mundo, mesmo que não esteja em um estado onde os jogos se realizarão.
Pelas regras atuais, qualquer obra só pode ter seu preço aumentado em 25%, com as explicações necessárias, para evitar abusos.
Agora, sob a nova legislação, o gasto pode ser ampliado sem limites, sob a justificativa de que pode haver uma exigência da Fifa que terá de ser cumprida.
A questão mais polêmica, a cláusula do sigilo do preço básico, está mobilizando até mesmo os principais líderes da base aliada, tendo o presidente do Senado, José Sarney, já dado o sinal para que seja derrubada.
Há países que usam esse sistema, mas não é nossa tradição nem há previsão na Lei 8.666. Especialistas dizem que não há vantagem nesse sigilo, pois o preçobase não é o preço máximo, não sendo proibido reduzir esse preço.
Com o sigilo, a licitação fica sem parâmetros, e a alegação de que ele impede a cartelização é considerada irreal, pois não há como impedir que as empresas envolvidas em uma licitação se acertem antes de apresentar seus preços, e nesse caso serão as empreiteiras que fixarão o preço-base.
O fato é que o RDC afrouxa muito a lei de licitações quando aceita, por exemplo, haver apenas um projeto básico, mesmo quando a empreiteira pode assumir o chamado “contrato global” que não está especificado.
Essa modalidade existe, mas aumenta o risco, a fiscalização fica mais difícil. Se chegar ao fim da obra e der errado, como resolver? Quanto mais cedo há a fiscalização, mais fácil evitar erros.
O inconveniente principal é criar dois sistemas de licitações de obras públicas, tornando muito mais difícil fiscalizá-las.
Fonte: O Globo, 21/06/2011