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terça-feira, 31 de maio de 2011

Ele voltou.

Artigo do historiador Marco Antonio Villa, publicado originalmente no jornal O Globo, edição de 31 de Maio de 2011. Aqui reproduzido através do blog do autor. Para acessá-lo, clique aqui.

Ele voltou.

Em 1928, no México, foi assassinado o presidente eleito Álvaro Obregón. O assassinato gerou grave turbulência política. Obregón já tinha exercido a Presidência nos anos 1920-1924. A Constituição de 1917 proibia a reeleição mas não o retorno ao poder após um interregno. O presidente em exercício, Plutarco Elias Calles, administrou a crise, elegeu outro sucessor e se transformou no dirigente de fato nos anos 1928-1935. Esse período da história mexicana ficou conhecido como "maximato", ou seja, Calles, considerado o "chefe máximo da revolução", era o dirigente de fato do governo. Este domínio terminou quando Lázaro Cárdenas, seu afilhado político, eleito presidente em 1934, no ano seguinte rompeu com seu mentor.
A crise do governo Dilma Rousseff e o retorno de Lula ao primeiro plano da cena política nacional é o nosso maximato. Lula teve de assumir o posto de presidente de fato, pois a presidente perdeu o controle da situação. Era esperado que isto fosse acontecer mas não tão cedo, com menos de cinco meses de governo. A inexperiência política da presidente era sabidamente conhecida. Antes de 2003, nunca tinha exercido qualquer cargo de importância nacional. Desconhecia os meandros de Brasília, além de não saber negociar, conviver com a diferença e com opiniões contrárias. Foi formada em outro mundo e outra época. Para ela, ainda deve valer o centralismo democrático, a forma stalinista de administrar, que trata qualquer opinião contrária como crime ou traição.

Quando foi ministra das Minas e Energia, ou mesmo na Casa Civil, pouco fez política. Outros ministros exerceram esse papel ou o próprio presidente Lula foi o articulador do governo. Sabedor desta dificuldade, Lula escolheu a dedo o chefe da Casa Civil. Antonio Palocci seria uma espécie de primeiro-ministro e encarregado dos contatos políticos com o Congresso Nacional e com os representantes do grande capital. Contudo, Palocci se encastelou no governo e pouco apareceu. De início foi considerado que era uma atitude de esperteza política, que estava articulando nas sombras. É a velha prática brasileira de encontrar qualidade onde há nulidade. O silêncio de Palocci foi entendido como estratégia e não como a mais perfeita tradução de alguém que não tem a mínima capacidade para o exercício do cargo. E para piorar surgiram as denúncias das consultorias pagas a peso de ouro.

A confusão ficou maior quando a articulação no Congresso Nacional demonstrou sua fragilidade. O pesado líder do governo deixou de realizar o papel de elo entre a base e o Planalto. Ficou cuidando dos seus interesses partidários. O ministro da Articulação Política é absolutamente inexpressivo (a maioria dos parlamentares sequer sabe o seu nome). Dada a sua fragilidade, estranho é que tenha demorado tanto tempo para que ruísse o esquema político organizado por Lula no final do ano passado.

O mais curioso é que a crise nasceu no interior do próprio governo. Ou seja, não foi provocada em nenhum instante pela ação oposicionista. A oposição continua desarticulada, politicamente dividida e omissa. A divisão ficou mais uma vez demonstrada na convenção do PSDB. O governo até recebeu um alento, pois a reeleição de Sérgio Guerra à presidência do partido indica que a oposição peessedebista continuará tímida, quase envergonhada, sem representar perigo. O Brasil desafia a teoria política: para o governo, o problema não é a oposição mas o próprio governo.

Como contentar o PMDB? Cedendo espaço na máquina governamental que possibilite bons negócios. Rentáveis para efeito privado e péssimos para o interesse público. O governo postergou, até o momento, a partilha do butim, não pela defesa da moralidade pública. Longe disso. Está testando o partido para ver até que ponto é possível negociar. Outra dificuldade é o relacionamento com o grande capital. Aí é briga para gente grande. Não é meramente para controlar alguma licitação de compra de remédios ou de alguma estrada. Representa desenhar o futuro econômico do país, estabelecer o relacionamento dos fundos de pensão com as grandes empresas e bancos, apontar para onde deve seguir o processo de acumulação capitalista. É uma disputa dentro do PT. O antigo partido socialista hoje é o partido das grandes corporações. Daí o número de consultores petistas. De uma hora para outra, todos viraram especialistas em capitalismo.

O mais estranho é que o país segue seu ritmo normal. Como se voasse com piloto automático. Até certo ponto, a economia vai bem. Segue no vácuo do que já foi feito. Isto tem um limite. Já está no momento de traçar novo rumo. Mas como iniciar esta discussão se o governo mal consegue administrar suas contradições?

Dilma vai precisar demonstrar que comanda. Pura encenação. Coisa de ópera bufa. Nos próximos dias assistiremos à presidente em várias reuniões. Veremos também (ah, a importância das imagens...) ela, séria, numa reunião ministerial; sorrindo, quando encontrar a liderança do PMDB. Mas a crise vai continuar. Palavras não substituem as ações.

E Lula? Depois que reassumiu informalmente o governo, vai permanecer como o poder atrás do trono. Não vai se imiscuir nas questões do varejo político. Vai atuar no atacado, valorizando (como gostaria de dizer nas suas célebres metáforas futebolísticas) o seu passe. E preparando calmamente o seu retorno ao Palácio do Planalto. Já deve ter jornal preparando a edição especial do dia 1º de janeiro de 2015. A manchete? Também já está pronta. Em letras garrafais, no alto página, estará escrito: "Ele voltou."

Marco Antonio Villa é historiador.


O ministro da Educação e sua curiosa lógica: se "eles foi", por que que "nóis não vai"?

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.


31.05.2011 - 15h21



Sobre as patacoadas a respeito do ensino do português que o Ministério da Educação tem oferecido ao distinto público, o poeta Ferreira Gullar escreveu um texto a meu ver definitivo. Está na Folha de S. Paulo do dia 25 de maio.
Ferreira Gullar não deixa pedra sobre pedra. Demonstra que a leniência quanto ao falar e escrever errado, se não é pura sandice, é uma mal-disfarçada  orientação partidária e ideológica que o MEC está estabelecendo – ou permitindo que se estabeleça – no ensino do idioma.
Num caso ou no outro – aqui quem fala sou eu-, é um motivo suficiente para a presidente Dilma Rousseff  dar início a uma séria reformulação na pasta.
Hoje (31.05), o ministro Fernando Haddad compareceu à Comissão de Educação e Cultura do Senado para discutir o assunto. Fez um enfático pedido para a questão ser tratada “no devido contexto”. O caso ganhou um clamor tão grande – declarou – “…que foi preciso dizer que o livro atende aos PCN [Parâmetros Curriculares Nacionais] que nem são do governo Lula, mas do governo Fernando Henrique”.
A lógica do ministro Haddad merece ser examinada no devido contexto, ou seja, contra o pano de fundo do discurso lulo-petista e das relações do governo Lula com o do presidente Fernando Henrique.
Não é segredo para ninguém que a diretriz “pedagógica” do MEC a respeito do ensino do português  vem recebendo pesadas críticas. Eu, particularmente, considero-a prá lá de equivocada. Para defendê-la, o ministro saca um Colt 45: a referida diretriz nem é do governo Lula, mas do governo Fernando Henrique. Neste caso, o governo FH é sinônimo de pedigree, ou de  indulgência plenária, como queiram.
E as centenas de medidas econômicas e sociais (a começar pelo Plano Real) que o governo FH implementou, que tiraram o país do buraco em que ele se encontrava e deslancharam um importante processo de transformação?
Ah, não. Nesse caso o argumento não se aplica. Lula sabidamente se valeu dos avanços econômicos e copiou as políticas sociais do governo anterior, mas reconhecer que o fez nunca esteve em suas cogitações. Para ele e para o todo o petismo, o legado de FH sempre foi algo a exorcizar: uma “herança maldita”.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.

Só no campo do ridículo a oposição oficial enfrenta o governo de igual para igual.

Artigo de Augusto Nunes, publicado originalmente na página do autor em VEJA.com. Para acessá-lo, clique aqui.



31/05/2011
 às 6:54



Infiltrada numa das três frases reservadas à decomposição moral do país, a palavra corrupção apareceu uma única vez entre as 3.612 proferidas por Dilma Rousseff no discurso de posse. “Serei rígida na defesa do interesse público”, começou a presidente. “Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito”, prosseguiu. “A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle e investigação terão todo o meu respaldo para atuarem com firmeza e autonomia”, encerrou.
Quatro  meses antes da posse, Dilma fizera o possível para livrar do camburão a primeira amiga Erenice Guerra, que transformou a Casa Civil na base de operações da quadrilha formada por parentes e agregados. As acusações não passavam de invencionices da oposição, disse mais de uma vez a candidata em campanha. Cinco meses depois da posse, Dilma faz o possível para impedir a apuração do milagre da multiplicação do patrimônio de Antonio Palocci. A mando de Lula, que retomou a lengalenga, a presidente anda repetindo que também as acusações ao ministro não passam de invencionices da oposição.
Neste fim de semana, todos os líderes do PSDB se juntaram em Brasília para tratar do futuro do partido. Não poderia haver ocasião mais oportuna para a vigorosa contra-ofensiva. Numa ação bem concatenada, os chefes tucanos tratariam de evocar o falatório da posse, protestar contra a obstrução das investigações sobre os crimes cometidos pelo bando de Erenice, exigir que o misterioso enriquecimento de Palocci seja prontamente esclarecido e mostrar ao país que, como no escândalo da mensalão, o governo sempre atribui aos adversários incêndios provocados pelo fogo amigo. Também seria pertinente perguntar a Dilma se e quando pedirá de volta atribuições sumariamente confiscadas por Lula, que baixou em Brasília para inaugurar no fim de maio um terceiro mandato.
Não sobrou tempo para isso. A oposição oficial tinha mais o que fazer. Tinha, sobretudo, outra guerra da secessão a travar, agora pela conquista da presidência do Instituto Teotônio Vilela. Metade do partido queria José Serra no cargo. Prevaleceu a outra, favorável à candidatura de Tasso Jereissati. Serra ganhou como prêmio de consolação a presidência de um conselho de sábios.
Pelo menos no campo do ridículo, a oposição oficial enfrenta o governo de igual para igual.

O PSDB diminuindo e o PT, como sempre, disfarçando suas divisões internas.

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para acessá-lo, clique aqui.


30.05.2011 - 17h31



A duras penas, o PSDB finalmente conseguiu superar seu impasse interno na convenção do último sábado. O grupo de Aécio Neves ficou com a parte do leão, mas José Serra ficou com uma posição relevante, dirigindo o recém-criado Conselho Político.
Não me perguntem se essa unidade “num patamar superior” vai dar uma boa liga oposicionista, ou se vai agüentar o tranco até 2014. São indagações prematuras.
O comentário que hoje me ocorre fazer é sobre uma percepção bastante comum na imprensa acerca do tucanato. O leitor desavisado é bem capaz de acreditar que o PSDB é o único partido com problemas internos. O palavreado começa  com  “divisões e rivalidades”,  sobe para “umbigos”, “vaidades” e “ambições” e logo atinge um patamar chamado “crise”. Em linguagem aeronáutica, isso é uma “razão de subida” deveras formidável.
Estarei eu dizendo que não há nada disso, que é tudo invenção da imprensa? De jeito nenhum. Atribuir tudo o que possa haver de mal à imprensa é uma arte que eu não domino; melhor dizendo, é uma arte que eu abomino.
Sim, contraposições e até arestas sempre existiram entre líderes tucanos. Como em todos os partidos, sem exceção: eis o ponto que  a meu ver a imprensa nem sempre destaca com a devida ênfase.
Tomemos o caso do PMDB… Será que precisamos mesmo discuti-lo? Vou apenas lembrar que em 2006 o partido se reuniu em Brasília para decidir se apoiava ou não o governo Lula. A pancadaria eles conseguiram evitar, mas decisão  propriamente não houve. Sabem  por que? Muito simples: a querela foi parar na Justiça e de lá não saiu até hoje.
Do PT, o glorioso Partido dos Trabalhadores, costumava-se dizer que era o único partido “autêntico” no Brasil. Nessa lenda até o empresariado acreditava. Autenticidade e coesão, assim seria o PT,  que se teria alçado a essa invejável condição graças à sua organização e sobretudo ao fato de possuir uma ideologia.
A realidade, como hoje sabemos, é bem outra. O que de fato unifica ou pelo menos disfarça os conflitos internos do PT  é a existência de um líder capaz de transformar qualquer coisa em votos. Não cabe aqui uma análise dessa capacidade, ou desse “carisma”- termo preferido por certos deslumbrados. Se Lula não fosse nesse aspecto um ponto fora da curva, ou se a direção efetiva do partido já tivesse passado à segunda geração, aí sim, poderíamos  ter uma medida adequada da coesão petista.
Mesmo hoje, no entanto, uma diferença importante pode e deve ser apontada entre tucanos e petistas. Os primeiros se dividem em função de perfis individuais (sim, há vaidades), de projetos político-eleitorais (Serra x Aécio) e, em certa medida, de conteúdos programáticos (Fernando Henrique algo mais “liberal” que Serra ou Aécio). São, como se vê,  divisões perfeitamente legítimas – a não ser para utópicos incuráveis, desses que vêem ilegitimidade em toda e qualquer atividade política.
No PT, as disputas são de que natureza, exatamente? Primeiro, diferentemente das que grassam no PSDB, elas não são perceptíveis a olho nu. Para apreendê-las e bem entendê-las, é preciso ser expert em PT. A “petelogia” é uma especialidade, não na mesma escala, mas no mesmo sentido em que o era a “kremlinogia” dos velhos tempos soviéticos.
A poucos dias do segundo turno, como todos se lembram, José Dirceu mandou um aviso curto e grosso à quase-presidente Dilma: os precedentes 8 anos haviam sido o governo “de Lula”, agora seria o governo “do PT”. Governo “do PT”, para bom entendedor, significava governo apoiado nas correntes internas do partido, a mais importante das quais segue há bastante tempo a liderança… do próprio José Dirceu.
Mas tendo Dirceu sido apontado como “chefe de uma organização criminosa” – e estando por essa razão na condição de réu num processo em curso no STF -, a presidente-eleita não teria como aproveitá-lo num cargo formal. O poder que ele sabidamente detém teria que ser exercido por condutos informais, por natureza difusos,  de difícil percepção pelo observador não especializado. E eis que Dilma, ao formar sua equipe, transforma ou tenta transformar  Antonio Palocci num espécie  de Grão-Vizir ou Cardeal Richelieu: um todo-poderoso chefe da Casa Civil.
Entre os “petelogistas” que conheço,  há quem veja a situação a que acima me referi como uma verdadeira falha de Andrews no PT . Por não se apreciarem muito no plano pessoal, por nutrirem ambições de poder conflitantes ou por encarnarem conteúdos programáticos inconciliáveis, Dirceu e Palocci repelem-se como camadas geológicas em portentoso atrito.
Não disponho de elementos para afirmar se  a mencionada clivagem geológica tem algo a ver com as recentes revelações acerca da variação patrimonial de Antônio Palocci. E nem preciso dessa  informação para  concluir meu argumento.
O que tentei fazer foi tão-somente ressaltar a existência  de disputas ao que parece até mais virulentas no PT que no PSDB, não obstante a imagem do primeiro como um grupo unido no mais aconchegante altruísmo e do segundo como um amontoado de vaidades em perpétua combustão.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.

Palocci inviabilizado, Dilma enfraquecida e Lula extrapolando: aonde é que isto vai dar?

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor, em EXAME.com. Para acessá-lo, clique aqui.


28.05.2011 - 16h47



Economista, ex-deputado e ex-ministro, o professor Delfim Netto é também conhecido por seu talento humorístico  e  por  sua mordacidade.  É dele, por exemplo,  a  expressão “estelionato eleitoral”, originalmente uma peça de zombaria a respeito dos resultados eleitorais de 1986.
Em 1986, para quem não se lembra,  a aliança  PMDB+PFL  esmagou nas urnas o PDS (ex-Arena) de Delfim Netto.  A  aliança  era  à época  a base de apoio de José Sarney, que  virou   presidente  devido à  morte de Tancredo Neves em abril daquele  ano.  O “estelionato”  a que Delfim se referia  foi o prolongamento do tabelamento de preços conhecido como Plano Cruzado  até depois  da eleição. Uma vez constatada a avalanche de votos favoráveis ao governo,  Sarney  proporcionou  ao Plano o  conveniente sepultamento e os preços voltaram a subir.
Num momento de franqueza, Delfim provavelmente admitiria que a eleição de 2010  foi um estelionato eleitoral de dimensões ainda maiores. Pela  gastança  do governo e pelo retardamento de medidas contra a inflação, desde logo. Pelo anúncio de obras e realizações que nunca saíram do papel, também. Mas sobre tudo  pela  sistemática ocultação da candidata à presidência.
Até a  undécima hora, Dilma Rousseff foi uma candidata rigorosamente  clandestina. Foi só na undécima hora  que Lula  concedeu aos cidadãos-eleitores o direito de saber alguma coisa a respeito dela.  Durante quase dois anos, a imagem da super-tecnocrata ( a responsável pelos “sucessos” do governo, a “mãe do PAC” etc) foi meticulosamente construída como um puro produto de marketing.  A Dilma de verdade, de carne e osso, essa passou pela cena sem dizer palavra.
Os acontecimentos dos últimos dez dias começaram a evidenciar o pleno significado e as graves implicações do  fato evocado no parágrafo anterior . Durante meses, e por diferentes ângulos, os observadores mais atentos  anteciparam os problemas  a que a clandestinidade de Dilma Rousseff provavelmente daria ensejo.
Primeiro, a questão da governabilidade. Estaria Dilma  Rousseff  de fato à altura do cargo que pleiteava? À parte os seus supostos conhecimentos técnicos, teria ela condições de compensar a sua evidente inexperiência no campo político?  Seria capaz de arbitrar  o jogo   nem sempre leal ou cordial  entre os partidos que a iriam apoiar no Congresso?  Em todos esses aspectos, quem  a afiançava era única e exclusivamente o seu mentor, Lula; mas   Lula, convenhamos,    não poderia ser incluído na metade mais objetiva dos 190 milhões de brasileiros.
Juntando a possível incapacidade de Dilma com a super-popularidade e as mal-disfarçadas ambições políticas  do próprio Lula, não era difícil perceber  que  um  dilema institucional potencialmente  sério  ia se configurando nos  desvãos da campanha. Com sua provável debilidade política, como  poderia Dilma Rousseff  se  desprender  da figura  dominadora de Lula?  Com que recursos – em termos de apoio social, popularidade, elementos simbólicos etc etc – poderia ela contar para  tornar efetivo  e não apenas jurídico o caráter unipessoal da presidência da República?
Porque, sejamos claros, a presidência é unipessoal.  Tornada  constitucional, a dualidade já seria uma complicação sem tamanho; informal, alheia à Constituição, ela  poderia (e pode) se configurar como uma ilegalidade e até como uma crise permanente.
Uma eleição não é uma mera coleta de opiniões. Não é uma simples oportunidade para os cidadãos  manifestarem suas preferências. Se assim fosse, bastariam as pesquisas. Elas resolveriam tudo, com menos incômodo e a um custo infinitamente mais baixo.
Na eleição presidencial, quando tecla o seu voto, o que o cidadão faz é decidir  a quem vai entregar o comando do Estado. Entendamo-nos quanto ao significado desta expressão. Ao candidato de sua escolha, o eleitor entrega um feixe de poderes. Desde logo, o poder de representá-lo,  de falar e agir em nome dele, dentro e fora do país. E obviamente o poder de decisão. O presidente terá que  tomar decisões e o eleitor terá  que acatá-las; poderá até ser forçado fisicamente a acatá-las, quer elas sejam ou não de seu agrado.
Quando digo “o eleitor”, quero dizer  todo o corpo eleitoral. Do ponto de vista constitucional, a distinção entre vitoriosos e derrotados é irrelevante. Os derrotados participaram, legitimaram e acataram o resultado das urnas. Portanto,  em 2010, não foram só os petistas, lulistas, peemedebistas ou o que seja que decidiram entregar os poderes da Presidência a uma pessoa chamada Dilma Rousseff. Fomos todos nós , os 130 milhões de eleitores.
Mas com uma condição importante.  Foi a ela e somente a ela que entregamos o  “office”, a magistratura presidencial. Na prática o poder nem sempre se individualiza a tal ponto, mas permitir que ele se dilua e se dualize equivale a colocar o pacto constitucional em risco.
Desde a nomeação dos ministros,  Dilma Rousseff, vem dando mostras de inaptidão para o exercício unipessoal do poder que a eleição lhe conferiu. Nos últimos 10 ou 15 dias, as  indicações desse tipo ganharam contornos bastante nítidos.
Evitemos. porém, um dramatismo desnecessário e fora de lugar. Ainda nem terminamos o quinto mês do governo Dilma.
O que estou dizendo – nem mais, nem menos – é que os acontecimentos da última semana  trouxeram de volta, e  justificadamente, algumas das apreensões  que  permearam a contenda eleitoral do ano passado.
Mas que fique claro:  cabe à presidente e às instituições formais do Estado resolver  os problemas apontados, na hipótese de eles se manifestarem de maneira persistente ou com maior profundidade.
No vigente regime constitucional brasileiro -  uma república democrática de Direito-,  não há espaço para a  figura  política de um “condestável”, um poder extra-constitucional e paralelo.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus



Lula e o esgoto

Artigo de Guilherme Fiuza, publicado originalmente na página do autor em ÉPOCA.com. Para ler a publicação original clique aqui.


15:43, 24/05/2011


O escândalo de corrupção na prefeitura de Campinas não tem nada de escandaloso. Tudo nesse caso é absolutamente normal.

Há uma ordem de prisão contra o vice-prefeito, do PT, que está foragido. Segundo o Ministério Público, ele é uma das cabeças de um propinoduto montado no serviço de águas e esgotos.

Qual é a novidade? Nenhuma.

É mera repetição do padrão consagrado, que tem no caso Celso Daniel seu emblema máximo: PT, lixo, esgoto, propina.

Em meio a essa mesmice, mais uma revelação trivial: no caminho da propina entre a empreiteira e a companhia de saneamento aparece, como suspeito, um empresário. 

Adivinhe de quem ele é amigo?

Acertou. É amigo do filho do Brasil.

Luiz Inácio da Silva, o homem e o mito, é candidato a um verbete no Guinness. Entrará no livro dos recordes como o cidadão com o maior número de amigos acusados de alguma trampolinagem.

Até no episódio do dossiê dos aloprados, os principais suspeitos eram amigos de Lula.

Tinha o churrasqueiro do presidente, o segurança e personal-chapa do presidente, o sindicalista de fé e irmão camarada do presidente desde os anos 70, e assim por diante.
Isso para não falar em Delúbio, Silvinho, Gushiken e grande elenco mensaleiro – todos da cota afetiva de Lula.

O aparecimento de mais um amigo do ex-presidente no caso do esgoto de Campinas não tem, portanto, qualquer relevância. Será possível que o Ministério Público ainda não entendeu o jeito Lula de fazer amizades?

Em vez de ficarem implicando com o ex-operário, deveriam estimulá-lo a ampliar o temário de suas valiosas palestras. Além de ensinar o jeito PT de administrar, Lula poderia discorrer sobre a importância do afeto na política.

E explicar como se faz para ter um milhão de amigos fichas-sujas, mantendo intacta a estampa de herói.

Seria um sucesso. Ele nem precisaria explicar como ficou amigo de Dilma Rousseff. 

sábado, 28 de maio de 2011

O perigo mora em Campinas.

Artigo de Augusto Nunes, publicado originalmente na página do autor em VEJA.com. Para acessá-lo clique aqui.


27/05/2011
 às 21:48



À saída do gabinete do procurador-geral do Estado, Fernando Grella, o presidente do PT paulista, Edinho Silva, informou nesta quarta-feira que a conversa de 40 minutos tratara do caso da quadrilha homiziada nos porões da prefeitura de Campinas. Como o elenco envolvido na roubalheira calculada em R$ 630 milhões inclui dois amigos do peito de Lula ─ o empresário José Carlos Bumlai e o prefeito, Doutor Hélio ─ a comitiva formada por cinco deputados estaduais estava lá para impedir que as investigações conduzidas pelos promotores do GAECO ultrapassassem as divisas do município.
“O partido não vai admitir especulações políticas em torno do ex-presidente Lula”, declamou Edinho. Também lhe pareceu absurda a decisão de engaiolar preventivamente o vice-prefeito Demétrio Vilagra, chefão do PT campineiro. “Não existe um único dado que justifique o pedido de prisão do companheiro Demétrio, que tem uma história vinculada aos movimentos sociais e não pode ser condenado publicamente”, protestou o líder da expedição. Ele desconfiou que a tentativa de intimidação não funcionara ao saber da réplica de Grella: “O procurador-geral reafirma seu apoio ao trabalho firme, sereno e imparcial desenvolvido pelos membros do Ministério Público no sentido do esclarecimento da verdade e da correta aplicação da lei, em cumprimento ao papel da instituição”.
Nos dois dias seguintes, como comprova o site de VEJA, teve certeza de que dera um tiro no pé. Preso nesta quinta-feira no aeroporto de Guarulhos, ao voltar da viagem a Madri, Vilagra passou a noite na cadeia. Nesta sexta-feira, Bumlai foi interrogado durante três horas. Acusada de liderar a quadrilha, a primeira-dama Rosely Nassim Jorge Santos precisará de muita imaginação para provar que o marido não sabia de nada. A história ainda em seu começo escapou de vez ao controle dos especialistas em livrar delinquentes do castigo.
Para abafar o escândalo que envolve também o amigo Ítalo Hamilton Barioni, o inevitável José Dirceu acampou em Campinas no domingo. Em reuniões com a turma, o consultor alertou-a para o risco de versões contraditórias. Dirceu certamente imaginou que a barulhenta passagem de Lula por Brasília impediria que o país ouvisse os estrondos em Campinas. Errou.  A consultoria gratuita só serviu para identificar com nitidez o caso que efetivamente inquieta os comandantes do PT. O que lhes tem tirado o sono não é o que se soube de Antonio Palocci. É o que falta saber sobre a quadrilha que desviou centenas de milhões dos cofres públicos com licitações fraudadas.
A crise provocada pelo milagre da multiplicação do patrimônio está circunscrita a Palocci, pode ser resolvida com o afastamento do chefe da Casa Civil e o governo federal está conseguindo bloquear o avanço das apurações. O tumor descoberto em Campinas é mais perturbador. O Ministério Público paulista já demonstrou que não se subordina a interesses políticos nem teme arreganhos autoritários. Os promotores do GAECO estão decididos a fazer Justiça.
Ainda à espera de artistas bastante conhecidos, o elenco já em movimento promete fortes emoções. Quando estiver completo, a plateia não vai querer perder nenhum capítulo.

Com qual presidente eu vou?

Artigo de Sandro Vaia, publicado originalmente no Blog de Ricardo Noblat. Para acessá-lo, clique aqui.

27 de maio de 2011 - 10:02h


Depois de um descanso de cinco meses, o presidente Lula reassumiu seu cargo na quarta-feira passada, foi almoçar com algumas eminências pardas na casa do sábio conselheiro Sarney, colocou ordem na casa da Mãe Joana em que se tornou o governo, deu um pito em alguns ministros, puxou as orelhas de Palocci e de Dilma Roussef por estarem maltrando a base aliada e foi embora para casa.
Não sem antes, claro, posar para as fotos com ar de Eisenhower pronto para comandar o desembarque na Normandia.
Na quinta, as prerrogativas do cargo voltaram às mãos de sua alter-ego eleita, que mandou arquivar os filmetes de propaganda anti-homofóbica que o ministro da Educação ia distribuir nas escolas públicas, dizendo que não cabe ao governo fazer propaganda de opções sexuais e nem interferir na vida privada das pessoas.
É certo que os filmetes só foram interditados depois que a bancada evangélica, com a sutileza elefantíaca de um Anthony Garotinho, ameaçou votar a favor da convocação de Palocci para depor na Câmara se os filminhos homoafetivos de Haddad não fossem retirados de circulação.
Ficou a impressão de que a presidente decidiu certo por linhas tortas, mas esses também são ossos do ofício presidencial.
Ao retomar seu cargo, a presidente ainda criticou aqueles que estão “politizando” o caso Palocci, como se a acusação de descomedido e rápido enriquecimento do ministro não fosse uma questão política, como se ela própria não fosse política , como se o acusado não fosse político, como se governo e oposição não estivessem aqui ou em qualquer lugar do mundo tratando de política e em qualquer hora do dia ou da noite travando um embate político, pois é de política que a política trata.
A República viveu uma semana divertida em sua primeira experiência multipresidencial desde que 3 militares dividiram a presidência, quando o marechal Costa e Silva sofreu uma trombose que o impediu de continuar governando.
Já na segunda-feira o governo sofrerá uma estrondosa derrota na votação da lei do Código Florestal, principalmente na votação da emenda que transfere aos estados a regulamentação de alguns artigos controvertidos do Código.
O PMDB, esteio numérico da base aliada, votou em peso na emenda, que a presidente Dilma chamou de “vergonhosa”, segundo o sutil aviso de Cândido Vaccarezza, o líder do governo na Câmara Federal, que foi atropelado em plenário e aplastado como um gato de desenho animado pelos seus próprios liderados.
Para completar a noite gloriosa, Vaccarezza deixou no ar uma advertência que horrorizou os deputados de almas mais sensíveis e que os distraídos jornalistas políticos deixaram passar batido como se fosse apenas uma banalidade: “Esta Casa corre risco quando o governo é derrotado”.
O que quis dizer Vaccarezza com isso? Ele estaria com um AI-5 no bolso ou foi apenas uma boquirrotice de um goleiro abalado pela bola que tinha acabado de passar por baixo de suas pernas?
Alguns deputados esbravejaram da tribuna, mas nenhum jornalista se deu ao trabalho de perguntar ao líder o que ele quis dizer com aquilo.
A semana agitada parece se encaminhar para um final menos turbulento, ainda que com uma dúvida pairando no ar: qual presidente governará na semana que vem?

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez.

A casa envilecida por um farsante, uma nulidade, uma quadrilheira e um Palocci.

Artigo de Augusto Nunes, publicado originalmente na página do autor em VEJA.com. Para acessá-lo, clique aqui.


26/05/2011
 às 19:56



Primeiro, Lula descobriu que a oposição resolveu despejar Antonio Palocci da Casa Civil “para desestabilizar o governo”. Alguém deve ter soprado que ele próprio, em 2006, livrou-se do estuprador de sigilo bancário sem que ocorressem abalos sísmicos no Planalto.  O ex-presidente engatou uma segunda, comparou o consultor mais caro do mundo ao maior jogador de futebol da história e ensinou que “não se pode deixar um Pelé no banco”. Alguém deve ter soprado que, se é assim, ele será lembrado como o presidente que expulsou Pelé de campo. O palanqueiro itinerante engatou uma terceira e, nesta quinta-feira, fez outra descoberta: “Palocci é o homem que prestou muitos serviços ao governo e não podemos desampará-lo”.
Se a preocupação é real, deve chamar imediatamente o doutor Márcio Thomaz Bastos, ou outro especialista em livrar pecadores de estimação do merecidíssimo castigo. O amparo jurídico impediu que Palocci fosse condenado pela violação da conta de Francenildo Costa na Caixa Econômica Federal. Mas já não há qualquer espécie de amparo político capaz de manter no cargo o ministro enredado no milagre da multiplicação do patrimônio. Palocci perdeu a voz há quase duas semanas por falta do que falar. Diga o que disser, nada mudará a verdade devastadora: ele enriqueceu com o tráfico de influência, usando como fachada a empresa de consultoria Projeto. Bom nome: nunca foi mais que um projeto a firma cujo quadro funcional se limitava à moça do telefone.
Foi Lula quem impôs a Dilma Rousseff a nomeação do novo chefe da Casa Civil envilecida pelas três escolhas anteriores. Deve-se debitar na conta do ex-presidente, portanto, a gangrena que surgiu com José Dirceu, expandiu-se com Dilma Rousseff, tornou-se especialmente malcheirosa com Erenice Guerra e completou-se com Antonio Palocci. Dirceu complicou-se em 2004 com a divulgação do vídeo em que o amigo íntimo Waldomiro Diniz, assessor para Assuntos Parlamentares, pedia propina a um bicheiro. No ano seguinte, o guerrrilheiro de festim estrelou o escândalo do mensalão e acabou substituído por Dilma.
A sucessora de Dirceu montou a fábrica de dossiês cafajestes e se enrascou na suspeitíssima conversa com Lina Vieira. Transferida para a campanha eleitoral, cedeu a vaga a Erenice Guerra, superassessora e melhor amiga, que reduziu a Casa Civil a esconderijo da quadrilha formada por parentes e agregados. Estigmatizado pelo caso do caseiro, Palocci já chegou com culpa no cartório. Conseguiu ampliá-la neste outono, quando o Brasil soube que o primeiro-ministro do novo governo é um reincidente sem remédio.
Waldomiro Diniz pôde redigir em sossego o pedido de exoneração. Oficialmente, saiu porque quis, esperteza repetida por Dirceu no inverno de 2005, quando o escândalo do mensalão desabou sobre a figura que a Procuradoria-Geral da República mais tarde qualificaria de “chefe de uma organização criminosa sofisticada”. Ele saiu como sairia Erenice: com um pedido de demissão que lhe valeu um salvo-conduto para aparecer quando quisesse (além do convite para a festa de posse de Dilma Rousseff).
Cinco meses depois de voltar ao coração do poder, chegou a hora de Palocci descobrir que um raio pode cair até quatro vezes no mesmo lugar. O governo já entendeu que é impossível mantê-lo onde está. A discurseira contra a imprensa, a oposição e funcionários da prefeitura paulistana é só a bisonha reprise do truque forjado para adiar o desfecho inevitável. O Planalto precisa de mais tempo para achar uma “saída honrosa” para o companheiro que desonrou quase todos os cargos que ocupou.
A cabeça e a alma de um governante se traduzem nas escolhas que faz. Para chefiar a Casa Civil, o pajé da tribo que topa qualquer negócio escolheu, sucessivamente, José Dirceu, Dilma Rousseff e Erenice Guerra. Um farsante, uma nulidade e uma quadrilheira. Coerentemente, decidiu que a sucessora deveria escolher Antonio Palocci. Obediente ao chefe, Dilma convidou um estuprador de sigilo. Veio junto um traficante de influência. As quatro obscenidades que o mesmo gabinete hospedou, somadas, compõem o mais revelador retrato de Lula.

DILMA ROUSSEFF ENTRE A ‘HERANÇA MALDITA’ DE LULA E SUA PRÓPRIA INÉRCIA

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.

25.05.2011 - 17h43



Começar por onde? Pela timidez da política econômica, que mal e mal tenta impedir a escalada da inflação e nada faz em relação à infra-estrutura? Pela política externa, que começou auspiciosa, tomando distância em relação ao Irã, mas ficou nisso? Pelas sempre urgentes e sempre adiadas reformas que Lula engavetou e Dilma periga de não desengavetar?
Justiça seja feita, o “estilo Dilma” contribuiu notavelmente para desanuviar e relaxar a atmosfera política do país. Falando pouco e denotando certa sobriedade, ela devolveu a milhões de cidadãos a preciosa faculdade do senso crítico. A consciência de que a verborréia lulista ultrapassara de muito os limites do tolerável.  Só por haver despoluído o ar, Dilma já mereceria aplausos.
Mas a melhora não se deveu apenas a seu estilo pessoal. Aqui e ali, mediante discretas indicações, ela de fato sinalizou que iria aos poucos se desvencilhar do torniquete ideológico lulopetista.  Quando anunciou que iria privatizar a expansão dos aeroportos mais congestionados, por exemplo; mas não custa lembrar que esse assunto também está sendo tocado a passos de cágado.
Imaginar que a presidente fosse se inteirar dos detalhes da política educacional em menos de 150 dias seria demais, admito. Minha impressão é que ela tomou conhecimento da falta de rumos do MEC da mesma forma que o público em geral, ou seja, pelos jornais. Foi por este caminho que o país veio a saber que tipo de livro o MEC adquire para distribuir entre centenas de milhares de estudantes.
Foram dois casos. Primeiro, livros destinados ao ensino de história no ensino médio, só que portadores de um flagrante (e previsível) viés ideológico-partidário. Segundo, com repercussão muito maior, o besteirol do “nóis pega os peixe”: um ajuntamento em tudo e por tudo pedestre de pseudo-idéias pedagógicas. Deixo para outro dia um comentário mais paciente e circunstanciado sobre essa matéria.
Mas eis que de repente, não mais que de repente, a Exma. Sra. Presidente da República se deixa arrastar para um imbróglio, este sim, de bom tamanho. Um imbróglio, dois imbróglios, um em dois ou dois em um, vamos ver aos poucos qual é a caracterização mais adequada.
De um lado, o affair Palocci. Não preciso recontar a história toda. Do essencial todo mundo já tomou conhecimento: o ministro-chefe da Casa Civil recebeu uma fortuna entre 2006 e 2010, período em que também exerceu o mandato de deputado federal. Alega tê-la ganho mediante atividades de consultoria, mas não deseja revelar quem foram seus contratantes nem por que o contrataram.   
Optando por não fazer de forma voluntária os esclarecimentos que a opinião pública reclama, o ministro obviamente se torna alvo de uma longa série de indagações e cobranças totalmente pertinentes.  Pode dizer que não deve satisfações a ninguém? É claro que não; isto aqui não é uma monarquia absoluta, é uma república, uma democracia, um Estado de Direito.
Pode dizer que seus ganhos estão dentro do padrão normal no ramo de consultoria econômica? Poder, pode; pode dizer o que quiser; mas precisa se lembrar que nem todos os cidadãos são crédulos incuráveis.
Pode dizer que as informações relevantes já foram prestadas ao fisco? De forma alguma. Sendo um agente público, não lhe cabe delimitar o que é ou não relevante. Já se sabe, por exemplo, que uma grande parte dos rendimentos que auferiu foi-lhe paga nos últimos dois meses do ano passado, após a eleição presidencial, tendo ele coordenado a campanha vitoriosa e intermediado os contatos dela com os provedores de recursos financeiros.
Numa ponta – chamemo-la a “ponta Palocci”-, é portanto evidente que a presidente se meteu numa enrascada. Sua opção, doravante, é manter ou demitir o todo-poderoso ministro da Casa Civil. Ela poderia ter evitado esse dilema? Claro que podia. Bastava ter indicado a Antonio Palocci a conveniência de um afastamento até os fatos ficarem plenamente esclarecidos.
Aqui chegamos à “ponta Congresso”, ou, se quiserem, à ponta Código Florestal, ou ainda à ponta PT-PTMDB.
Não quero fazer uma avaliação injusta. Numa questão que consideram vital, os ruralistas provavelmente fariam valer o seu peso numérico na Câmara, de um jeito ou de outro. Mas precisava ser uma derrota acachapante como a que se verificou ontem, com possíveis reflexos no Senado? Se este mantiver o texto  aprovado na Câmara, Dilma não terá outra opção a  não ser o veto, e a partir daí o relacionamento entre o Executivo e o Legislativo poderá sofrer uma deterioração substancial e duradoura.
No fragor dessas duas batalhas – Palocci e Código Florestal -, Dilma Rousseff  pediu ajuda. Chamou Lula, Franklin Martins e outros menos votados. Oficialmente eles teriam ido a Brasília por outras razões, claro, mas este texto não é destinado a leitores mirins. Na realidade dos fatos, o  processo acima rememorado pode ser resumido em três pontos.
Primeiro, Dilma está começando a sentir em seus ombros o peso da “herança maldita” de Lula: a ilha da fantasia no aspecto econômico, o país travado pelas reformas que ele poderia ter feito e não fez etc etc.
Segundo, o peso de sua própria inércia. É difícil dizer se Dilma não percebe a densa nuvem de dificuldades que está se formando, ou se percebe mas  não tem coragem ou capacidade para agir. Fora de dúvida é que ela continua refém das facções  e dos apetites partidários que despudoradamente se digladiam à sua vista, refém das ambigüidades ideológicas e partidárias que a catapultaram à sua atual posição.
Por último, a presidente parece prestes a ser tragada por um duplo sorvedouro. De um lado, certa propensão a olhar o Congresso de cima para baixo, tratando-o de maneira arrogante e autoritária – atitude em geral desaconselhável mas especialmente grave em vista de sua inexperiência no ramo. De outro, ao constatar a pouca solidez do terreno em que está pisando, o rápido recurso ao mentor, ao paizão: Lula.
Essa fórmula pode funcionar uma, duas ou três vezes, mas acabará por aprofundar o seu desgaste. Inevitavelmente. Como dois e dois são quatro.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.