Excelente artigo de Fábio Danesi, originalmente publicado no site OrdemLivre.org. Para ver apublicação original clique no link acima.
O governo e as cotas
O homem entra no restaurante. É um restaurante francês. Faz tempo que não come comida francesa. Está com saudade. O maître o conduz até a mesa. O garçom traz o cardápio. Ele olha o cardápio atentamente. Em dúvida entre o steak tartare, o boeuf bourguignon e o magret de canard. Vontade de pedir todos. Decide-se, enfim:
HOMEM: Steak tartare, por favor.
GARÇOM: Me desculpe, senhor. Não temos steak tartare hoje.
O homem convence-se de que foi uma sorte. No fundo queria mesmo o...
HOMEM: Boeuf bourguignon.
GARÇOM: Infelizmente hoje nós também não servimos esse prato.
O homem começa a se irritar.
HOMEM: O que é que vocês servem hoje então?
GARÇOM: Feijoada, senhor.
HOMEM: Feijoada?
GARÇOM: Feijoada.
GARÇOM: Feijoada.
HOMEM: Você quer dizer cassoulet?
GARÇOM: Não, cassoulet a gente não serve hoje.
O homem suspira.
HOMEM: Tem alguma coisa além de feijoada?
GARÇOM: Tem, senhor.
HOMEM: O quê?
GARÇOM: Vatapá.
GARÇOM: Tem, senhor.
HOMEM: O quê?
GARÇOM: Vatapá.
HOMEM: Vatapá?
GARÇOM: Vatapá.
GARÇOM: Vatapá.
HOMEM: Esse restaurante não é francês?
GARÇOM: É sim, senhor.
HOMEM: É um restaurante francês que não serve comida francesa?
GARÇOM: É sim, senhor.
HOMEM: É um restaurante francês que não serve comida francesa?
GARÇOM: É o governo, senhor.
HOMEM: O governo?
GARÇOM: O governo.
HOMEM: O governo?
GARÇOM: O governo.
Então o garçom explica. O governo fez uma lei. Uma lei de cotas. Todo restaurante agora tem que passar vinte e oito dias do ano servindo comida brasileira.
HOMEM: Não é possível.
GARÇOM: É verdade, senhor.
A explicação continua: o governo quer incentivar a cultura gastronômica nacional. A tradição culinária de nosso país. Quer proteger as receitas brasileiras (setor estratégico) da concorrência desleal do imperialismo estrangeiro. Abaixo a degradação da carne crua! Fora com os coelhinhos assados! Viva a içá! O atolado de bode! O tambaqui!
O homem se levanta, indignado. Grita:
HOMEM: O governo pode obrigar vocês a servirem vatapá! Mas não pode obrigar ninguém a comê-lo!
Antes de sair, batendo a porta, ouve a resposta:
GARÇOM: Ainda! Ainda!
***
No final do ano, o presidente Lula aprovou a chamada cota de tela para 2010. A cota de tela obriga todo cinema brasileiro a passar filme nacional. É uma idéia antiga, que começou timidamente em 1934 (os cinemas tinham que exibir filmes educativos antes das sessões), consolidou-se durante o autoritarismo do Estado Novo e chegou ao auge durante a ditadura militar (que foi mais de esquerda do que de direita, ao contrário da crença geral), quando os cinemas foram obrigados a exibir produções nacionais durante 140 dias por ano.
Hoje, o número de dias é mais baixo (vai de 28 a 63 dias, dependendo do número de salas do cinema). Mas qualquer número acima de zero é alto demais.
A explicação para a cota de tela é a seguinte: o governo quer incentivar a cultura cinematográfica nacional, a tradição dramatúrgica de nosso país. Quer proteger o cinema brasileiro (setor estratégico) da concorrência desleal do imperialismo cultural estrageiro.
Mas outra explicação também poderia ser dada: a cota de tela é um modo de o governo agradar o pessoal que trabalha com cinema. E se o governo agrada o pessoal que trabalha com cinema, por que o pessoal que trabalha com cinema iria desagradar o governo? É uma compra informal de consciência.
Eu sou roteirista. Trabalho com dramaturgia. Vivo disso. Como profissional, cota de tela pode até ser bom para mim. Mas não dá pra ser a favor — eu não consigo. É inaceitável que um governo legisle sobre os filmes que vão passar no cinema. É tão inaceitável quanto legislar sobre o que os restaurantes devem servir.
Pode-se argumentar que a cota de telas não aumenta o público do cinema nacional; apenas faz com que os cinemas fiquem mais vazios. E se o público diminui, o preço do ingresso aumenta. E isso é evidentemente ruim.
Mas não precisamos nem chegar à questão econômica. Mesmo que todo mundo ganhasse mais dinheiro com essa lei (se fosse o caso, ela não precisaria ser lei), teríamos o direito de perguntar: como assim, o governo decidir o tipo de filme que o cinema vai passar? Não é uma decisão autoritária? Não extrapola os limites que o governo deveria ter?
O governo legislar sobre uma coisa dessas é tão absurdo quanto aquela cena do filmeBananas, do Woody Allen, em que o ditador de uma republiqueta de bananas (à la Cuba) anuncia as novas medidas:
"A partir de agora, a língua oficial de São Marcos é o sueco. Além disso, todos os cidadãos devem mudar sua roupa de baixo a cada meia hora. As roupas de baixo devem ser usadas do lado de fora, para que a gente possa checar. Mais: todas as crianças com menos de dezesseis anos passam agora a ter dezesseis anos."
É isso. Cota de tela é tão absurdo quanto isso.
O governo pode obrigar todos os cinemas a passarem filmes nacionais. Pode até mesmo obrigar os restaurantes a servirem comida tipicamente brasileira. Mas não pode obrigar ninguém a ver filme do Mateus Nachtergaele. Nem a comer vatapá.
Ainda. Ainda.