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domingo, 17 de julho de 2011

A questão dos limites.

Excelente artigo de Roberto Damatta, publicado originalmente no Estadão de 13 de julho. Para acessá-lo, clique aqui.


13 de julho de 2011 | 0h 00
Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo



A palavra mais lida nos jornais é "corrupção". Explodem escândalos vergonhosos em todos os níveis do governo. Todos falam de roubalheiras que vêm de "cima" para "baixo", dos "governantes" que deveriam, pela nossa velha cartilha, dar o exemplo, para a sociedade. Eles não são apenas a herança do populismo lulista - um populismo de extraordinários resultados coletivos e privados, mas revelações de um sistema administrativo construído sobre uma contradição. Pois se o republicanismo que vem lá da Revolução Francesa se funda na igualdade perante a lei, o estilo brasileiro de exercer o poder é aristocrático e hierárquico.
Quem está mais longe do poder é sujeito da lei e quem o controla multiplica seus bens assaltando os recursos da sociedade impunemente e com a proteção (ou "blindagem") governamental. É o descaso para com a igualdade republicana que está no fundo de todos esses escândalos claros ou velados e são eles que colocam em xeque o governo e, muito mais que isso, a nossa capacidade de honrar a democracia.
Sobretudo agora que vamos bater novamente de frente com o "mensalão", essa vergonha de um partido que prometia transformar todos os costumes políticos nacionais, mas que demonstrou que o nosso problema é muito mais de atitude gerencial e de cuidado para com a coisa pública do que de mera figuração ideológica.
Nosso moinho satânico não é bem o capitalismo com suas mais-valias e seus monopólios, mas um Estado que troca o senso de limites pelas relações de amizade que se (con)fundem com os elos partidários. O tal governo de coalizão que sempre foi a marca da política nacional é hoje a carteira privilegiada de um clube onde se chega pelo individualismo e pela igualdade das disputas eleitorais, e tira vantagem através da desigualdade que caracteriza o exercício de uma administração centralizada num "Estado" que só sabe pensar em si mesmo. A nossa interpretação do liberalismo foi no sentido de transformar o seu individualismo em privilégio pessoal porque nele só enxergamos o lado dos direitos e das vantagens, esquecendo sua dimensão de dever, de honra e de responsabilidade. Dos limites e fronteiras que chegam mais pelo bom senso e pela boa-fé do que pela polícia, pelos tribunais e pelas leis.
O que falta nessa mixórdia não é discutir leis e inventar mais instituições e códigos de conduta, mas a discussão dessas inocentes pontes "naturais" e "humanas" entre gerentes públicos (prefeitos, governadores, ministros, reitores, diretores, presidentes, etc...) e administradores privados - todos enriquecendo brutalmente com o nosso dinheiro.
E o ponto central para realizar tal discussão é ter uma consciência cada vez mais clara de que quem produz os recursos e a riqueza é a sociedade. É o conjunto de pessoas que forma o tal "povo" que não é nem pobre ou rico, mas é comum no sentido de ser parte de um todo com interesses e valores coincidentes. Pertence a esse povo o dinheiro nacional, bem como a conduta dos seus gerentes, eleitos por tempo limitado. Eles não são os seus donos, mas os seus gerentes. Eles não têm o direito de fraudar esse povo em nome de sua libertação ou de sua miséria, mas a obrigação de honrá-lo com o gerenciamento eficiente e honesto dos seus recursos.
Só a consciência radical da igualdade perante a lei e a responsabilidade pública dela decorrente pode nos libertar desse embrulho ideológico mistificador no qual os governantes se apresentam como protetores, mães, pais e tios, primos e, no fundo, proxenetas do "povo". Esse povo propositalmente confundido de modo imoral e populista com os "pobres" que precisam de um Deus no Céu e de nossa ação a seu favor na Terra. É entre ele e os projetos governamentais que brotam as mestiçagens do público com o privado - essas misturas que multiplicam bens num grau que escandalizaria um imperador romano.
Precisamos urgentemente de uma consciência de limites - essa irmã do bom senso. O bom senso sobre o qual Tom Paine, em pleno século 18, exortando a separação entre pessoa e papel num mundo novo, marcado pelo individualismo e pelo ideal de liberdade e igualdade, discutia. Tal conta de chegar entre pessoa (com seus interesses particulares) e papel público (que demanda isenção, equilíbrio e altruísmo). Sabemos como isso é complexo num país marcado pela desigualdade da escravidão, como bem viu Joaquim Nabuco. Mas sem essa consciência do que é público e do que é particular, não vamos alcançar o mínimo da responsabilidade pública demandada numa democracia representativa, pois ela depende dessa discussão daquilo que é suficiente para cada um de nós num sistema em que, aparentemente, o céu pode ser o limite - como exemplificam os nossos representantes (???) na esfera pública, sobretudo os que nos governam.
Termino com uma parábola.
Conta-se que numa reunião na mansão de um multimilionário americano, o escritor Kurt Vonnegut Jr. (autor, entre outros, do incrível Matadouro 5), perguntou ao seu colega Joseph Heller (autor do não menos perturbador e brilhante Ardil 22): "Joe, você não fica chateado sabendo que esse cara ganha mais num dia do que você jamais ganhou com a venda de Ardil 22 no mundo todo?". Ao que Heller respondeu: "Não, porque eu tenho alguma coisa que esse cara não tem!". Vonnegut olhou firme para ele e disse: "E o que você acha que pode ter que esse sujeito não tenha?". Resposta do Heller: "Eu conheço o significado da palavra suficiente!". 


Os indignados de hoje e de ontem

Artigo de Sandro Vaia, publicado originalmente no blog de Ricardo Noblat. Para acessá-lo clique aqui.


O correspondente do jornal espanhol “El País”, Juan Arias, está indignado com os brasileiros porque eles não vão às ruas para manifestar a sua indignação contra a corrupção.
A indignação, como se sabe, é um movimento da moda. Dizem que é filho dileto das redes sociais. Substitui o modo tradicional de fazer política através dos partidos ou dos “movimentos sociais” (que na verdade são segmentos sublocados de militância partidária mal disfarçada, pelo menos aqui no Brasil ), por uma forma genérica de protesto que consiste em acampar em praças e fazer manifestações em logradouros públicos com objetivos finais ainda pouco claros.
Seria a indignação que derrubou Mubarak no Egito, que tenta derrubar ditadores sírios, líbios, iemenitas e assemelhados.
Parente dessa indignação é a das praças da Espanha e da Grécia, onde se liquefaz a influência dos partidos e onde o prestígio da democracia é corroído pelos programas de arrocho e pela expansão do desemprego provocado pelos amargos remédios usados para curar as mazelas provocadas pela irresponsabilidade fiscal.
O uso de veneno para combater veneno é a fórmula mais eficaz para semear a indignação.
Como costuma acontecer com movimentos genéricos de protesto que nascem órfãos de ideologias sistematizadas, há centenas de padrastos querendo adotá-los, pregar-lhes etiquetas e fornecer-lhe fraldas e mamadeiras ideológicas.
Como se supõe que eles estejam protestando contra o que está aí e queiram substituir o status quo por qualquer outra coisa, os fornecedores de receitas mágicas sempre têm pronto no bolso do colete um modelito de socialismozinho prêt-a-porter para oferecer como panacéia para curar a indignação.
Os indignados até agora não deram mostras de querer incluir entre as suas aspirações a adesão cega às utopias regressivas que já fracassaram em sua missão de estabelecer o paraíso na terra.
O que eles querem é decência na vida pública, emprego, sistemas eficientes de proteção social que não sejam corroídos pela corrupção e estão à procura de alguma forma nova de participação na vida em comum que não passe pelo desmoralizado e desgastado caminho do jogo de poder do establishment partidário.
Enfim, sabemos muito bem o que eles não querem, mas não temos a menor idéia de onde e como pretendem chegar.
Como disse um leitor do “El País” num diálogo com a ombudsman do jornal, “essa corrente defende um novo sistema. Uma catarse. Mas morrem de idealismo e quando têm que expor seus argumentos em assembléia, não chegam a um consenso”.
Juan Arias não sabe, mas esses novos indignados no Brasil não vão às praças porque ainda são incipientes habitantes das redes sociais e não encontraram uma forma de expressão fora dos resmungos no mundo virtual.
Os indignados de antes, que pintavam as caras e saíam à rua para protestar contra outras corrupções e outros governos, hoje dividem entre si os frutos do poder.
Chegaram lá e quem chega lá não se indigna mais.

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez.

Corrupção: os porquês de nossa aparente passividade, e possíveis saídas (II)

Artigo de Bolívar Lamounier publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.

15.07.2011 - 20h26

Este é o segundo de uma série de três posts que planejei sobre o candente tema da passividade brasileira frente à corrupção. A rigor, meu objetivo é focalizar melhor as questões em jogo, uma vez que o tema em si permeia vários dos textos que elaborei para este espaço.
Recapitulando um pouco, eu me propus abordar o assunto por meio de três indagações:
  1. Por que há tanta corrupção?
  2. Por que a sociedade não reage; como se explica tamanha passividade?
  3. É possível imaginar uma situação futura na qual uma parcela ao menos dos cidadãos rompa essa passividade e se comporte como uma verdadeira “comunidade moral”? Que podemos fazer de prático para que isso aconteça?
Hoje, vou repisar alguns aspectos da primeira indagação e me concentrar na segunda; deixo para amanhã o desafio maior, que é o de sugerir providências práticas.
POR QUE HÁ TANTA CORRUPÇÃO?
Esta pergunta não comporta uma resposta única ou consensual, mas alguns pontos parecem-me bastante bem ancorados. Pensemos, inicialmente, no aspecto internacional: a incidência da corrupção entre países. Dada a virtual impossibilidade de se medir de fato a quantidade de corrupção, muitos pesquisadores utilizam uma medida subjetiva: a quantidade de corrupçãopercebida por um grupo de avaliadores, ou por uma amostra qualquer da sociedade. Convenhamos que não é uma solução satisfatória. De qualquer modo, há estudos estatísticos mostrando o óbvio: a corrupção percebida é mais alta em países mais pobres. Essa constatação sem dúvida envolve um círculo vicioso ou, se preferem, um efeito inercial; se há muita corrupção, é porque os transgressores lograram montar e mantêm uma complexa organização, esquemas de proteção etc que o poder público, com seus parcos recursos, não consegue combater de forma eficaz.
Observe-se, porém, que estudos desse tipo baseiam-se em comparações estáticas (sincrônicas), tomando certo número de países num mesmo momento do tempo. Se pudéssemos documentar o que ocorre num mesmo país através de um dilatado período de tempo – ou seja, na perspectiva diacrônica -, constataríamos o oposto, isto é, que a corrupção cresce  à medida em que a renda total da sociedade e a mobilidade da riqueza aumentam. Dizendo-o de outra forma, a corrupção não diminui à medida em que a riqueza aumenta: ela aumenta, durante um longo período, à medida em que a economia se desenvolve.
Um terceiro ponto que vários estudiosos brasileiros têm sugerido e pesquisas internacionais têm confirmado, é que a corrupção tende a ser tanto maior (ceteris paribus) quanto maior o controle do Estado sobre a economia e mais acentuada a participação dele como responsável direto por uma grande parcela das atividades produtivas.
Finalmente, e aqui vou fazer uma afirmação passível de controvérsia, o conjunto de forças políticas que chegou ao poder no Brasil nos últimos anos parece imbuída de certas concepções de política, de crescimento econômico e mesmo de Estado assaz desfavoráveis a um esforço sustentado de combate à corrupção. Falta-lhe, desde logo, uma compreensão rigorosamente impessoal do Estado, por sua vez imprescindível num projeto político efetivamente modernizador.
Por essa ou por outras razões, as referidas forças têm-se mostrado lenientes com a corrupção, ou pouco propensas a enfrentá-la; é o que me parece, embora a presidente Dilma Rousseff  me pareça merecer o benefício da dúvida em função de algumas atitudes que tem assumido.
O leitor poderá estranhar eu não haver incluído em minha lista alguns dos argumentos mais comuns, ou mais tradicionais:  aqueles que invocam a nossa “origem ibérica”, a “cultura brasileira”, o “caráter nacional” etc; não se trata de implicância ou dogmatismo, e sim de certa dificuldade que encontro  toda vez que me proponho verbalizá-los com o desejável rigor lógico.
POR QUE A SOCIEDADE NÃO REAGE?
A passividade real ou aparente da sociedade brasileira já em parte se explica pelas razões acima, mas três outros fatores me parecem igualmente essenciais.
O primeiro é o desempenho da economia: a inflação sob controle desde meados dos anos 90, e o forte crescimento do PIB e da renda nos últimos cinco anos. Como é arqui-sabido, esta combinação de fatores econômicos propiciou índices de aprovação extremamente elevados ao governo Lula, com duas importantes decorrências no que tange ao ânimo contestatório da sociedade. Por um lado, nas condições apontadas, o presidente anterior não teve dificuldade em “anestesiar” a sociedade com sua retórica e sua fértil imaginação, prevenindo (sobretudo junto ao “povão”) o aparecimento de algum foco de insatisfação eventualmente portador de questionamentos éticos. Pelo outro, uma acentuada relutância entre os políticos – aqui me refiro a todos, governistas e oposicionistas, desde os senadores e deputados federais aos vereadores do mais humilde município – a assumirem um discurso contundente, e já nem falo em ações mais expressivas de contestação.
A segunda razão que desejava mencionar é que a mobilização da opinião pública e a ocorrência de manifestações de protesto dependem muito do tipo de problema ou de malfeito que estejamos analisando. Uma coisa é o que os americanos denominam bread-and-butter issues: problemas econômicos. A instabilidade da moeda (quem não se lembra da super-inflação que nos atormentou durante décadas?) e carências agudas soem despertar protestos de forte intensidade e bastante amplos, espraiando-se, no limite, para o país inteiro. Mas é ingenuidade imaginar que protestos comparáveis tenham alta chance de acontecer em relação a problemas “meramente” políticos, infrações éticas ou mesmo a escândalos de corrupção, por afrontosos que estes sejam. Esta afirmação pode causar espécie e dar ensejo a irritadas objeções:  como foi então que milhões de brasileiros foram às ruas por ocasião da campanha pelas Diretas-Já e novamente quando do impeachment do presidente Fernando Collor de Melo?
A diferença, no meu modo de ver, reside na configuração política daqueles dois fatos; no fato, melhor dizendo, de ambos haverem adquirido uma feição nítida e dramaticamente plebiscitária, condição que não se repetiu nenhuma vez desde então. Por configuração plebiscitária deve-se entender uma situação percebida e vivida como um confronto entre dois e somente dois lados. Sim ou não, preto ou branco, aceitar ou não aceitar.  Questões éticas e escândalos de corrupção não necessariamente se apresentam como uma contraposição radical entre dois lados.
No caso de Collor, o caráter de confronto se estabeleceu basicamente em virtude – atenção!!! – da percepção generalizada de que o próprio presidente da República e sua família estariam envolvidos em práticas de corrupção. Depois dele, o paralelo mais próximo teria sido a situação de Lula durante a crise do mensalão, mas em nenhum momento ele chegou a ser percebido nos mesmos termos.
Contra a minha avaliação, pode-se evidentemente levantar uma série de “ses”: se a oposição tivesse sido mais contundente, se a Rede Globo tivesse feito isto ou aquilo…Pode ser, tudo é possível; neste texto, não tenho como correr atrás de todas essas possibilidades.
Em terceiro e último lugar, a participação política da sociedade é dificultada por um conjunto de fatores abundantemente estudado pelos  cientistas políticos. Este ponto tem tudo a ver com aquele que é o argumento não apenas mais comum, mas provavelmente  o mais sofrido de quantos temos ouvido ultimamente: a despolitização do povo brasileiro.
Aqui estamos nas cercanias da auto-flagelação. Para muitos, o problema é o subdesenvolvimento, a pobreza, os índices educacionais pavorosamente baixos da maioria dos brasileiros. Para outros, já é uma questão cultural, ou de caráter; a esta altura, estamos todos metidos num convívio generalizado com a corrupção;  com tal elenco, afirma-se, não tem  jeito mesmo; ninguém quer saber de nada, que dirá de ética; esse quadro, dizem os mais angustiados, não muda em menos de 500 anos.
Sim, o povo brasileiro é despolitizado. Num país de baixa renda e com tamanhas carências educacionais, esta afirmação pode ser considerada óbvia. Mas vamos com calma. Aqui, é essencial levar em conta o conhecimento acumulado sobre participação política, que remonta ao segundo após-guerra e abrange praticamente todos os  países do mundo.  Existe evidentemente uma relação entre status social (renda, nível educacional) e politização. Por politização devemos entender uma disposição a participar  (uma propensão psicológica); tal disposição inexiste, ou não adianta muito, quando o indivíduo carece de certos recursos fundamentais, como a educação, já mencionada, o pertencimento a grupos sociais que a reforcem etc etc. No frigir dos ovos, o que importa é portanto a capacidade de acompanhar os acontecimentos de maneira atenta e sustentada, a ponto de assimilar, contextualizar e processar criticamente as informações.
Assim entendida, a politização é um fato muito mais raro do que se imagina; qualquer que seja o país tomado como referência, o cidadão médio é muito, mas muito menos politizado do que as pessoas de alto nível educacional em geral supõem.
Ora, se a afirmação anterior vale para o “cidadão médio” (não importando aqui o método empregado em tal mensuração), é evidente que a noção de “despolitização” se aplica a fortioriaos estratos menos escolarizados: ao “povão”. Neste nível, princípios políticos abstratos são pouco compreendidos, para não dizer quase universalmente ignorados, portanto pouco relevantes.
O que têm “princípios políticos abstratos” a ver com escândalos de corrupção? Ora, basta ler ocaput do artigo 37 da Constituição: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Sim, de acordo, a turba que de tempos em tempos queima centenas de automóveis em Paris “participa”: manifesta sua insatisfação. Revolta-se. Não perde a chance de chutar o balde. Sim, participa, mas nem por isso deixa de ser uma turba; por pior que seja a situação dos integrantes daqueles grupos, por maior que seja o sofrimento deles,  descrever seu comportamento como “participação cidadã” equivale a abastardar bastante este último conceito. Nada faz crer que sejam pessoas politizadas no sentido que acima dei a esse termo.  
Outro ponto importante é que toda participação tem custos.  Não precisamos nos deter aqui na definição técnica de tais custos ou nos métodos usados em sua mensuração. Basta lembrar que toda participação exige atenção, assimilação e processamento de informações, ou seja, no mínimo um custo em termos de esforço e de tempo. Envolve também riscos: isto os piromaníacos da periferia de Paris seguramente compreendem. Sempre há algum custo de oportunidade, dado que o indivíduo poderia empregar o tempo dedicado à participação noutra atividade: no lazer junto à família, por exemplo, ou assistindo a um programa na TV.
Pessoas cultas muitas vezes questionam esses empregos alternativos do tempo, torcem o nariz para os programas oferecidos pela TV etc. É uma atitude compreensível do ponto de vista de quem a sustenta, mas irrelevante pelo prisma do indivíduo hipotético a que estou me referindo, e portanto também irrelevante no que concerne à indagação de que eu parti no começo desta discussão.
O cidadão pode preferir tomar parte nas atividades que mencionei a participar de uma reunião política, e não deixa de ter razão, pois o grosso do trabalho político cabe às instituições: aos partidos, ao parlamento, aos juízes. A democracia é representativa, não direta; o cidadão delega poderes às instituições para que elas ajam por ele, e  as financia com seus impostos. Se o desempenho delas fica aquém do necessário, é outro problema.
O cidadão de meu exemplo é hipotético, mas é, bem ou mal,  um brasileiro, não alguém que tenha saído caminhando das páginas de Jean-Jacques Rousseau.
Permitam-me apontar aqui mais três dificuldades derivadas do que os cientistas sociais denominam a “teoria da ação coletiva”.
Primeiro, a exigüidade (em números relativos) da camada social que em tese teria maior disposição e recursos para participar.  No Brasil, a relutância da parcela mais escolarizada da classe média em combater um governo apoiado pelo povão –  mesmo estando descontente com ele ou considerando-o corrupto – será tanto maior quanto mais consciência tiver de sua inferioridade numérica. A este desestímulo é preciso acrescentar que uma parte desse estrato tenderá a racionalizar (descontar ) suas objeções éticas na medida em que sustente certas outras atitudes: preferências ideológicas ou partidárias, no caso dos petistas de alto status social, por exemplo. Isto significa que a influência política real dessa faixa da classe média não é tão grande quanto se imagina, e pode até estar em declínio.
Segundo, há o que se poderia chamar de efeito grão-de-areia. Em termos relativos, como indiquei no parágrafo anterior, a classe média escolarizada representa uma parcela diminuta do todo social. Contudo, em termos absolutos, essa parcela ainda é um conjunto enorme. É grande o suficiente para o indivíduo se sentir pequeno dentro dele. E quanto maior ele for, mais provável será o indivíduo se sentir insignificante. Num conjunto formado por milhões de pessoas, chegaremos inevitavelmente a este paradoxo: a maioria se sentirá irrelevante, impotente, ineficaz. Como milhões de grãos de areia tomados um a um.
E há, finalmente, o efeito free-rider: o caso do sujeito que prefere pegar carona na mobilização a participar dela. Quer o apreciemos moralmente ou não, esse comportamento é adotado por um grande número de indivíduos quando o objeto da reivindicação é um “bem público” (no jargão dos economistas). A expressão designa um bem indivisível: não há como provê-lo somente a alguns dos que participam de determinada ação. Sendo indivisível, ele será posto à disposição de todos ou de nenhum.
Imaginemos um bairro cujos habitantes subitamente não têm como utilizar um viaduto que consideram imprescindível; alguns assumem a liderança e convocam os potenciais interessados para pressionar a prefeitura. A ação surte efeito; a prefeitura apressa a reparação e o viaduto volta a ter condições de uso. A partir desse momento, todos podem utilizá-lo, não só os que arcaram com o custo da participação. Se o êxito da ação beneficia a todos, inclusive aos que não participaram dela, um indivíduo que tenha optado por não participar tenderá a pensar que optou acertadamente.
Voltando ao tema da corrupção, o problema é que “um governo ético” é um bem público. Não há como dividir o resultado e conceder uma parte maior dele aos que participaram da mobilização. Se a ação não der resultado, tudo bem, o individuo que optou por ficar à margem tem o consolo de não haver abdicado do lazer, do tempo que queria passar com a família, do assistir ao jogo de seu time etc. Se o resultado for positivo e o país ficar mais ético, ótimo, ele também sairá ganhando, pois ninguém  poderá privá-lo do benefício.
Não por acaso, por maior que seja a indignação, o número de indivíduos que se queixam da passividade dos demais é sempre muito maior que o número de participantes efetivos. E  estão certos; a indignação é um motivo necessário, mas não suficiente para produzir a ação coletiva. A maioria só vai à rua e à praça em momentos moral e politicamente críticos, quando líderes políticos de primeiro plano e os meios de comunicação entram em cena e todos experimentam uma identificação mais forte com a consciência do país. Foi o que ocorreu nas duas campanhas mais célebres: a das Diretas-Já e a do impeachment de Collor.
Sobre líderes e partidos políticos, não há muito a acrescentar. É óbvio que falta, no momento, uma elite política capaz de “jogar dentro da área”, leia-se capaz de servir como referência ao menos para aquela parte (não muito grande) da sociedade que talvez se dispusesse a participar com certa intensidade e regularidade. No Brasil isto é visível a olho nu, mas o fenômeno não é só brasileiro.
Não posso concluir sem mencionar outra dificuldade muito séria: a escassa participação dos meios de comunicação na vida política. Facilmente perceptível no Brasil, este é um fato do mundo atual; por toda parte, a TV é sobretudo um forma de lazer doméstico. Se o conteúdo político aumentasse muito, tomando o lugar de outras matérias a que os telespectadores estão habituados, com certeza haveria rejeição.
Imagine-se, a título de comparação, como era a vida dos cidadãos da baixa classe média ou da classe operária nas principais cidades da Europa ali pelos anos 20 do século passado. O continente inteiro vivia as seqüelas gravíssimas da Primeira Guerra; só isso já fomentava a discussão política. Acrescente-se que a participação era motivada ideologicamente (estava-se em plena “era da ideologia”), e era de certa forma um comportamento gregário, um motivo para ir à rua e ver outras pessoas: de lazer, o ambiente doméstico não tinha nada. A questão, portanto, não é só que a convocação era feita continuamente por líderes, sindicatos e partidos de direita e de esquerda: é também que havia estímulos à politização embutidos na trama da vida cotidiana.
Se algum leitor me acompanhou até aqui, com certeza estará mergulhado em atroz desânimo. Sendo tantos os obstáculos à participação, chega a ser surpreendente que certo número de pessoas bem ou mal tome parte em atos voluntários.
Qual é, afinal, a idéia? Desistir, pura e simplesmente? Dar por assentado que  cidadania, valores, democracia são pura conversa prá boi dormir?
Meu pensamento vai no sentido oposto. Se o que desejamos é adensar o componente ético do mundo político, o primeiro passo é compreender melhor o que é, de fato, o mundo político; o segundo, entender que o mundo político, caso assimile alguma ética, com certeza não será uma ética puramente subjetiva e fundada em preceitos absolutos. Essa ética serve para o eremita, não para pessoas diuturnamente engajadas numa luta por posições de influência e poder.
Compreender o mundo político pelo prisma da participação significa, antes de mais nada, revisar nossas idéias a respeito do conjunto social. Pela Constituição, o Brasil tem cerca de 135 milhões de eleitores, mas a eleição é o único ato político ao qual a quase totalidade desses 135 milhões de fato comparece.
Para entender a participação, é mister efetuar sucessivos cortes nessa totalidade, dela subtraindo as parcelas que dificilmente atenderão a este ou àquele tipo de convocação. Com tal objetivo, melhor será imaginarmos a totalidade social como uma cebola, e não nos surpreendamos se, no final, tendo arrancado todas as cascas,  só um pequeno cerne nos tiver restado nas mãos.
O resultado quantitativo pode parecer frustrante, mas não prejudica a nossa reflexão sobre a última das três questões sugeridas no início deste texto: faz sentido imaginar uma situação futura na qual uma parcela expressiva da sociedade saia da passividade e se comporte como uma verdadeira “comunidade moral”? Que podemos fazer de prático para que isso aconteça?
Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.

Corrupção: os porquês de nossa aparente passividade, e possíveis saídas (I)

Artigo de Bolívar Lamounier publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.

13.07.2011 - 18h32

Sobre o tema indicado no título, eu talvez devesse me limitar a uma recomendação enfática do texto que o Reinaldo Azevedo postou hoje (13.07) no blog que mantém na revista Veja. Se invento de lhe acrescentar alguma coisa, é mais pelo gosto do debate, e na esperança de encontrar algo útil a dizer em razão de minha formação em ciência política.
O que motivou o Reinaldo foi um artigo publicado no dia 7 deste mês pelo jornalista Juan Arias, correspondente no Brasil do jornal espanhol El País. Como tantos de  nós temos feito, Arias perguntou onde estão os brasileiros indignados. Por que não ocupam as praças para protestar contra a corrupção e os desmandos?
Com sua habitual precisão, Reinaldo começa observando que a resposta não é simples nem linear: as praças estão vazias devido a uma conjugação de vários fatores. No essencial, porém, ele diz que o “povo” não está nas ruas porque foi privatizado pelo PT;  porque o PT compra, por exemplo, o MST com o dinheiro que repassa a suas entidades;  porque a outrora gloriosa UNE hoje é apenas uma repartição pública alimentada pelo lulo-petismo com milhões de reais; porque a CUT e as outras centrais sindicais,  tão vigilantes nos tempos de FHC, também se tornaram sócios bem-remunerados da corrupção dos últimos anos, e convenientemente esqueceram, como é óbvio, suas antigas críticas ao Imposto Sindical, cobrado compulsoriamente dos trabalhadores, sejam sindicalizados ou não.
O Imposto, como ninguém ignora – diz Reinaldo -, “é a fonte que alimenta as entidades sindicais e as próprias centrais, que não são obrigadas a prestar contas dos milhões que recebem por ano. As esquerdas dos chamados movimentos sociais estão engajadas, mas em defender o governo e seus malfeitos. Afirmam abertamente que tudo não passa de uma conspiração contra os movimentos populares. As esquerdas infiltradas na imprensa demonizam toda e qualquer reação de caráter legalista. Ao longo dos quase nove anos de poder petista, a sociedade brasileira ficou mais fraca, e o estado ficou mais forte; não foi ela que o tornou mais transparente; foi ele que a tornou mais opaca. Em vez de se aperfeiçoarem os mecanismos de controle desse Estado, foi o Estado que encabrestou a sociedade civil”.
E OS “CARAS-PÁLIDAS”, POR ONDE ANDAM?
Aí está, em grandes linhas, o triste quadro pintado por Reinaldo Azevedo. O problema, infelizmente, é que ele piora bastante  à medida em que lhe acrescentamos certos fatores demográficos e sociológicos sabidamente relevantes; por exemplo, a descontinuidade da memória coletiva em relação às duas principais mobilizações dos últimos 30 anos. Dezoito anos se passaram  desde o movimento pelo impeachment de Fernando Collor, e 26 desde a campanha das Diretas-Já.
De meados dos anos 80, quando assistimos ao restabelecimento do poder civil e da democracia, uma geração inteira entrou em cena. Qualquer pesquisa que se faça mostrará que a geração mais jovem simplesmente ignora o que se passou nessa época; hoje, a própria  expressão “caras-pintadas” designa um fato histórico já meio perdido nas brumas do tempo.
(continua)

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.

Entre um escândalo e outro, que tal refletir um pouco sobre o próprio conceito de corrupção?

Artigo de Bolívar Lamounier publicado originalmente na página do autor em EXAME.com. Para acessá-lo clique aqui.

05.07.2011 - 18h40




Teodicéia é a parte da teologia que procura esclarecer as origens do mal. É a disciplina teológica mais cultivada no Brasil.
Há entre nós uma crença generalizada de que o mal é tem raízes distantes. É super-complexo, e só conseguiremos enfrentá-lo quando o conhecermos em sua plenitude.
Mas como essa crença é um pouco angustiante, inventamos uma outra, para amenizá-la. Uma espécie de antídoto. Passamos a acreditar que o mal tende a se desgastar só com a passagem do tempo. O mal que hoje conhecemos já não tem o vigor que possuía na origem. E com certeza se extinguirá num futuro não muito distante.
Claro, devemos denunciá-lo, resmungar, xingar, mas não precisamos queimar pestanas tentando conhecê-lo melhor, ou tentando tomar alguma medida prática. Não há razão para tanto.  Nada de exageros. Mais um pouco e as coisas se ajeitarão.
Experimentem este exercício: perguntem a uma dúzia de brasileiros por que há tantos bandidos e tão poucos mocinhos. De onde vem essa corrupção que corrói de alto a baixo a nossa sociedade e nosso sistema político?
O primeiro com certeza dirá que ela começou 50 anos atrás, por causa da construção de Brasília. O segundo, que ela apareceu com a Proclamação da República. O terceiro, que só pode ser coisa do período colonial, quando os poderosos ganharam as sesmarias,  que depois se transformaram em latifúndios, que por sua vez deram origem às oligarquias regionais e às parentelas que se aboletaram desde o início na administração pública.  
Mas deixa estar, isso aí é um sistema moribundo. Daqui a pouco, quando ele der seu último suspiro, seremos um povo redimido. Não haverá mais corrupção; o Estado funcionará como deve: como uma máquina impessoal; os políticos serão sujeitos formidáveis, e nós também, seremos cidadãos exemplares.
E o pior dessa história, me acreditem, é que essa fantasia não é um mau começo. O Estado português, avô ou bisavô do Estado brasileiro atual, era de fato o supra-sumo dopatrimonialismo, um sistema em que os súditos a rigor não possuem nada, pois toda a riqueza pertence ao rei.
Todos os grandes empreendimentos, todos os negócios super-lucrativos pertencem ao rei, mas ele obviamente não tem como digerir tudo isso, então o que ele faz  (bingo!) é conceder tais chances aos parentes e amigos, ou mesmo a inimigos, contanto que passem a apoiá-lo política e militarmente.
Abro um parêntesis. Incrível foi esse Estado super-centralizado, que sufocava no nascedouro qualquer pequena chance de empreendimento privado realmente autônomo, ter tido a audácia de organizar e levado a cabo o maior dos empreendimentos portugueses: a navegação transoceânica. Fecho o parêntesis.
Sim, essa idéia de Estado não só permaneceu como se desenvolveu entre nós após a Independência. Dizer que tal modelo facilitava a corrupção chega a ser impreciso, pois nele, como notei acima, a rigor não existe uma distinção clara entre o público e o privado. O que impede o governo de colocar um amigo, ou um filho do amigo, ou um primo do amigo, em determinado cargo público? Se o governo quiser, quem o impedirá de criar uma sinecura para o amigo, o filho etc? Ninguém, obviamente.
Atentem por favor para o paradoxo:  por um lado, é certo que a corrupção endêmica que contamina a vida brasileira tem muito a ver com o legado patrimonialista português, mas, por outro, é errado, ou pelo menos impreciso, caracterizar como corruptas as práticas da era colonial e de grande parte de nossa história como nação independente.
Mas a idéia de corrupção demora a ganhar nitidez  também por uma outra razão. No período colonial e até uma fase bem adiantada do Brasil independente, a estrutura econômica era de uma extrema simplicidade.
Para fazer fortuna, só havia dois caminhos, um lícito e outro ilícito, o primeiro dependendo, como é óbvio, da graça da Coroa: ser um grande  proprietário de terras; o comerciante que monopolizava praticamente o  fornecimento de produtos agropecuários aos poucos núcleos urbanos da época, ou um grande contratador de serviços (como a coleta de impostos, já mencionada).
Os caminhos ilícitos eram poucos e assaz arriscados; nada tinha de invejável o futuro do sujeito pilhado contrabandeando diamantes, por exemplo. Convém lembrar que a maior parte da riqueza, além de controlada por uma elite extremamente exígua,  tinha existência física e pouquíssima mobilidade; estávamos ainda muito longe do documento fraudado, do superfaturamento, do “laranja” e da transferência eletrônica de haveres.
Das especulações acima expostas, é possível extrair algumas conclusões à primeira vista estranhas, mas a meu ver imprescindíveis ao entendimento da realidade atual.
A corrupção configura-se de forma paulatina, à medida em que o país se moderniza. Ela resulta da confluência de pelo menos três fatores. Primeiro, a crescente complexidade da economia e da sociedade, e dos avanços técnicos que vão ocorrendo no comércio, no sistema bancário etc. Segundo, a tipificação jurídica cada vez mais precisa das transgressões que soem acontecer em diferentes interfaces do Estado com a esfera privada; ou, dizendo-o de outro modo, a progressiva catalogação, no corpo de leis do país, de um amplo espectro de práticas patrimonialistas como transgressões. Terceiro, e não menos importante, o aparecimento da  cidadania: vale dizer, de uma consciência de direitos e de uma disposição a exigi-los entre parcelas crescentes da sociedade.
No cerne do processo há,  pois, uma interação entre fatores materiais (uma maior complexidade da economia e da sociedade), político-jurídicos (a codificação ou sistematização das transgressões) e culturais (a emergência de uma consciência de direitos e de uma nova atitude moral).    Questionadas por juristas, pela imprensa e por forças políticas independentes, as antigas formas de apropriação da riqueza pública por setores privados tornam-se inaceitáveis, ou sejam, passam a ser categorizadas como corrupção.
Observem aqui este outro paradoxo, o maior de todos: a corrupção não desaparece ou diminui com o passar do tempo. Se assim fosse, a praga teria uma existência apenas residual, e não haveria dificuldade em identificar e liquidar politicamente os seus restos.  Mas a realidade é bem o oposto.
A corrupção aumenta com a crescente complexidade da vida econômica e social; com a presença cada vez mais nítida de um componente moral e dos interesses dos cidadãos no corpo jurídico-normativo; e, não menos importante, com o avanço da democracia, que multiplica as chances e formas de cobrança e oferece proteção aos cidadãos que de fato se interessem em cobrar.
Do que acabo de expor não se deve porém inferir que a corrupção apenas parece maior porque agora “há mais informação”, “mais investigação” etc. Este é o discurso que certos governos gostam de ouvir e, principalmente, de propagar. O que de fato está ocorrendo, como tentei mostrar, é um processo muito mais complexo, iniciado muitas décadas atrás e sem data marcada para acabar.
Eu tampouco pretendi sugerir a que formas de participação e cobrança o cidadão deve recorrer. Essa questão deve ser examinada caso a caso e em função de casos ou tipos específicos de transgressão. Penso, aliás, que  ganhamos em clareza quando falamos em tipos de transgressão, deixando o termo corrupção no plano mais abstrato a que ele pertence.
Fundamental, de qualquer modo, é esquecer a fantasia de erradicar totalmente a corrupção. Isto nunca aconteceu na história, em nenhum país, e nada sugere que possa um dia acontecer.
A atitude verdadeiramente moral não  se alimenta de fantasias. Seu objetivo é melhorar o mundo que conhecemos – inevitavelmente imperfeito, o mais breve possível, mas sem esmorecer quando a caminhada nos parecer longa.
Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A fusão do Pão de Açúcar com o Carrefour: o BNDES entra com R$ 4 bilhões para favorecer um empresário de estimação.

Artigo de Augusto Nunes, publicado originalmente na página do autor.


Ao implodir todas as falácias forjadas pelo governo e pela direção do BNDES para explicar a inexplicável injeção de R$4 bilhões na fusão do Pão de Açúcar e do Carrefour, o artigo de Carlos Alberto Sardenbergpublicado na seção Feira Livre deixou claro que a operação foi montada para favorecer o empresário Abílio Diniz. Para confirmar em última instância o curto e preciso diagnóstico do senador Aloysio Nunes Ferreira, que qualificou o negócio de “absurdo e escandaloso”, só faltava a entrada em cena do advogado Márcio Thomaz Bastos. Agora não falta mais nada: ao contratar o advogado-geral do Planalto para representá-lo, Abílio produziu simultaneamente uma confissão de culpa e outro indício veemente  de que o governo se meteu em outra enrascada de bom tamanho.
Criminalista talentoso, Márcio vem esbanjando inventividade desde 2005, quando abandonou as funções de ministro da Justiça para livrar da cadeia os quadrilheiros do mensalão. Transformou crime em erro, ladrão em tesoureiro distraído e produto do roubo em recursos não-contabilizados. Decerto encontrará alquimias menos bisonhas que as apresentadas pelos trapalhões federais. O mais recente se ampara na necessidade de defender a pátria ameaçada por vorazes concorrentes internacionais. “O patriotismo é o último reduto dos canalhas”, disse o escritor inglês Samuel Johnson. Como qualquer generalização, essa também é perigosa. Mas se aplica exemplarmente aos nacionalistas de araque em ação neste início de inverno.
“O mérito da operação é criar maioria nacional num conglomerado internacional”, recitou nesta quinta-feira o mineiro Fernando Pimentel, que ganhou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior por ter naufragado na tentativa de virar senador. O fervor nacionalista contagiou o vice-presidente do BNDES, João Carlos Ferraz: “A bandeira verde e amarela é sempre importante”, declamou a jornalistas interessados em saber se a doação bilionária tem motivações técnicas ou políticas. Se fosse tão importante assim, deixaram de replicar os repórteres, o banco não estaria financiando aventuras em Cuba, na Venezuela e em outras paragens controladas por parentes ideológicos do PT.
É muito cinismo, berram os fatos. Até as gôndolas dos supermercados sabem que Abílio Diniz foi um generoso patrocinador das campanhas eleitorais de Lula e Dilma Rousseff. Tornou-se amigo de infância de Lula e continua a entrar sem bater nos gabinetes federais ocupados por quem manda.  Por algum motivo, arrependeu-se de ter vendido o controle do Pão de Açúcar aos sócios franceses do grupo francês Casino, resolveu romper o contrato e, para manter-se entre os barões do reino, pensou na fusão com o Carrefour. Se a ideia fosse boa, não lhe faltariam parceiros na iniciativa privada. Como só ele sairá ganhando, foi cobrar a conta dos favores prestados aos amigos no poder.

Seis meses de governo: Dra. Dilma, Dra. Dilma, abre o olho

Artigo de Bolívar Lamounier, publicado originalmente na página do autor em Exame.com.

01.07.2011 - 17h11



No dia 10 de junho eu escrevi que o quadro político brasileiro estava ficando esquisito. Com a presidente se debilitando a olhos vistos, sua base de apoio em frangalhos e as oposições sem condições de encarnar uma agenda alternativa, o país parecia caminhar para uma acefalia precoce.
Decorridas mais três semanas, eu estou menos tenso (andei tomando água com açúcar), mas ainda vejo motivos de preocupação.O  que me preocupa não é este ou aquele projeto, esta ou aquela trapalhada, mas o conjunto. Penso que Dilma Rousseff  não se livrou totalmente do risco de um desgaste profundo.
Resumidamente, o problema é que o governo Dilma não tem uma “marca”, uma identidade, prática ou simbólica; nada há nele que se assemelhe a um programa, um pensamento ou mesmo uma atitude. A presidente não parece compreender que governar é tomar decisões; não é uma pessoa propriamente carismática; já não conta com o calor das urnas; não tem uma agenda positiva para o relacionamento com o Congresso e tampouco um esquema eficiente de articulação política. Conta com uma base parlamentar numerosa, mas daquele tipo que ninguém de bom senso visita sem um kit anti-cobra ao alcance da mão.
No começo do ano, como comentei em posts anteriores, o Brasil de repente acordou simpatizando com a Dra. Dilma. Não que ela tivesse dito ou feito alguma coisa cativante ou graciosa; o que ocorreu foi apenas uma sensação de alívio com a saída de um presidente que falava demais e a entrada dela, falando de menos.
Com a mencionada melhora na condutibilidade atmosférica de sua imagem, bastou-lhe esboçar alguns posicionamentos para as camadas “ilustradas” da opinião pública  caírem nos braços dela. Aqui eu me refiro à dura que ela deu no governo iraniano e ao anúncio da intenção de privatizar a construção de novos terminais aeroportuários.
No caso dos terminais, todo mundo entendeu que não se tratava de uma súbita conversão ao “neoliberalismo” (no jargão petista), mas tão-somente  de uma   rendição pragmática ao cronograma da Copa e da Olimpíada. De fato, se a única alternativa  fosse o dinheiro público, seria melhor pedir desculpas à Fifa e ao Coi e bater em retirada (o que, aliás, não me parece uma má idéia, mesmo havendo recursos privados e uma eficiência fora do comum na provisão das estruturas e serviços necessários).
Até aquele ponto, como comecei a dizer, Dilma deu a impressão de estar  pronta para a decolagem, mas nem deu para comemorar: no momento seguinte ela parecia ter entrado em queda livre.
Da coordenação política e das relações com o Congresso, eu nem preciso falar. Derrotas acachapantes, Lula se intrometendo e cobranças fisiológicas um tanto despudoradas conscientizaram a presidente de que em muitas ocasiões ela terá que escolher entre recuar ou recuar.
Na Realpolitik meio rombuda que se pratica atualmente no Planalto Central, quem ousa falar em valores, símbolos e legitimidade acaba passando por muito velho, muito louco ou totalmente ingênuo. Eu porém me atrevo a dizer que uma postura ética claramente definida teria poupado à Dra. Dilma o desgaste a que ela foi submetida no affair Palocci. Digo mais: daquele limão, ela poderia ter feito uma limonada. Para afirmar a sua própria estatura moral, bastar-lhe-ia se desfazer da visão petista da política como uma ação entre amigos e exorcizar a assombração de seu mentor.
Bastava-lhe agir como um verdadeiro chefe de Estado,  fazendo, por exemplo, o que fez aquele suposto “caipira”, Itamar Franco, que simplesmente afastou o seu ministro alvejado por acusações até o assunto ficar esclarecido. Foi uma pena a Dra. Dilma não ter feito isso. Em sua passividade, esperando a tempestade passar, o que ela fez foi evidenciar   sua inapetência para tomar decisões; e de quebra – deixando-se ficar à espera do relatório do Procurador-Geral -,  protagonizar mais um episódio da deletéria “judicialização” da política.
Dilma Rousseff também não disse a que veio no que toca à política econômica. Querendo maximizar ao mesmo tempo todos os objetivos concebíveis, ela se arrisca a dar com os burros n’água em todos.
O pior, no entanto, é seu apego a uma concepção de política industrial que a cidadania rejeita com crescente ênfase. Aqui eu evidentemente me refiro àquela prática que o Brasil conhece desde priscas eras: pick the winner; escolha o governo quem haverá de vencer. Às favas o mercado, o marco regulatório, os contratos  e o “sonho” de um arcabouço jurídico estável.Empresário bem sucedido é empresário apoiado pelo governo, tratado a pão-de-ló pelo BNDES, agraciado com socorros providenciais e juros de pai para filho. A empresa séria, em condições de fazer um grande investimento, que confiança vai ter num país em que as regras do jogo podem ser alteradas de uma hora para outra por fiat político, em nome do “interesse nacional”?
Mas nem tudo são espinhos. Outro dia, no aniversário de 80 anos do presidente Fernando Henrique, Dilma enviou-lhe uma respeitosa mensagem de cumprimentos. Respeitosa, simpática…, ou um pouco mais que isso.
Eu diria mais que respeitosa e simpática, por duas razões. Primeiro, porque nela a presidente quebrou um tabu. Disse com todas as letras o que os lulopetistas parecem ter medo de dizer: que sem a estabilização levada a cabo pelo governo FHC,  nada do que aconteceu de positivo nos oito anos de Lula teria acontecido.
Segundo, porque Dilma Rousseff demonstrou apreço pela liturgia da vida pública. Escrever isso é um tanto embaraçoso, visto haver quem pense de forma diferente, mas Dilma, ao enviar sua mensagem, demonstrou  compreender que política não é guerra; que, numa democracia que se quer digna deste nome, o relacionamento entre as autoridades deve pautar-se por uma atitude de cordialidade e respeito mútuo.
Entendo, portanto, que a mencionada mensagem era portadora de significados importantes. Se eu estiver certo, alvíssaras! Apesar do momento de debilidade que está atravessando, a presidente tem condições de assumir em sua plenitude o cargo a que foi conduzida pela maioria dos eleitores.

Bolívar Lamounier
O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente, A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.